O relator especial da liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Pedro Vaca Villareal. (Foto: ASCOM/Bia Kicis)
Estive em Brasília pela primeira vez em 1.º de janeiro de 2003, para a posse de Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato como presidente. Na casa dos 20 anos, e criado numa cultura política de esquerda, eu achava então que o Brasil mudaria para melhor. Sim, eu era um típico imbecil juvenil e dei a minha modesta contribuição para trazer a praga que arruinaria o país.
Desconsiderando uma ou outra rápida viagem a trabalho, ou eventuais escalas no Aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek, considero que só voltei realmente a Brasília 22 anos depois, mais precisamente na última terça-feira, dia 11 de fevereiro de 2025, e já livre da juvenilidade (quanto à imbecilidade, há controvérsia). Do ponto de vista pessoal, foi como retornar para um acerto de contas com a própria consciência. Afinal, se dera minha modesta contribuição para estragar, como não tentar contribuir um pouquinho para consertar?
Na coluna anterior, publicada em 7 de fevereiro e intitulada “O que o relator especial para a Liberdade de Expressão da CIDH deve saber do Brasil”, reproduzi a carta que enviei naquela mesma data a Pedro Vaca Villarreal, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Rele-CIDH). Eis que, no dia seguinte, recebi da entidade um e-mail convidando-me a ir a Brasília para uma reunião com Pedro Vaca, no âmbito da visita de trabalho da Rele-CIDH. O objetivo, dizia o e-mail, era “receber informações sobre questões relacionadas à liberdade de expressão no Brasil”.
Todos os relatos feitos a Pedro Vaca Villareal, da CIDH, confirmam, para além de qualquer dúvida razoável, a vigência de um estado de exceção no Brasil
Como eu disse acima, a reunião ocorreu na terça-feira, dia 11, às 18h30. O local foi o Instituto Livre Mercado (ILM), no qual fui gentilmente recebido pelo diretor-executivo Rodrigo Marinho. Além de mim, estiveram presentes outras vítimas de censura, bem como réus do 8 de janeiro, advogados e familiares dos presos políticos, que prestaram depoimentos verdadeiramente impactantes sobre os muitos abusos de autoridade cometidos contra eles pelo Estado brasileiro. Destaco especialmente as falas de Luiza Cunha, filha de Cleriston Pereira da Cunha (o Clezão), e Mariana Eustáquio, filha do jornalista exilado Oswaldo Eustáquio.
De pé e encarando Pedro Vaca nos olhos, Luiza, órfã do preso político morto na Papuda por negligência do Estado brasileiro, denunciou a tortura sofrida pelo pai, honrou o seu bom nome (conforme o quarto mandamento) e suplicou pela ajuda da comissão. Já a menor de idade Mariana, trêmula pelo nervosismo, esforçava-se por conter as lágrimas e conseguir detalhar aos representantes da Rele-CIDH as gravíssimas violações de direitos humanos de que foi vítima, como quando agentes da Polícia Federal invadiram a sua casa, apreenderam os seus equipamentos eletrônicos (incluindo um tablet de uso escolar) e submeteram-na a uma revista íntima, fato que chegou a ser noticiado pela Gazeta do Povo.
Além desses, houve outros relatos com grande carga emocional. Todos confirmam, para além de qualquer dúvida razoável, a vigência de um estado de exceção no Brasil. Ali, naquela sala apinhada do Instituto Livre Mercado, Pedro Vaca não esteve diante de uma “narrativa” da “extrema-direita” – como querem fazer crer os setores mais corruptos, sabujos e sicofantas da imprensa nacional, nos quais a prática do jornalismo se converteu em assessoria de imprensa para tiranos. Pedro Vaca não olhou nos olhos e apertou a mão de “bolsonaristas” – o estigma usado pelo regime e seus sequazes para justificar seus abusos de poder. Não, Pedro Vaca teve contato direto com as vítimas reais do consórcio político-jurídico que governa o Brasil e que, sob um uso cínico da ideia de “democracia defensiva”, assumiu poderes excepcionais e ultrajantes.
Em suma, Pedro Vaca conheceu pessoas e histórias de vida que são a razão mesma da existência de uma organização como a CIDH. Depois da pantomima a que foi submetido no encontro de véspera com os abusadores, decerto o encontro com os abusados foi um imprevisto choque de realidade. Donde talvez se explique a declaração dada pelo relator logo ao fim da reunião da qual participei, e muito bem provocada pelo repórter Samuel Pancher, do portal Metrópoles: “O tom dos relatórios é realmente impressionante”.
De minha parte, usei os cinco minutos de que dispunha para contar ao relator o meu caso particular de censura. Comuniquei-lhe que, ao menos desde 2019, temos vivido tempos estranhos no país, tempos nos quais o Judiciário, que em tese deveria ser o mais imparcial e temperante dos poderes, foi tomado pela parcialidade e pelo radicalismo político. Tempos em que o vocabulário técnico do direito foi substituído pelo jargão militante, e em que magistrados alardeiam a sua missão (“dada e cumprida”, mas não prevista constitucionalmente) de “combater a extrema-direita” e “derrotar o bolsonarismo”. Tempos nos quais um partido em forma de corte, abolindo qualquer resquício de isonomia, passa a julgar não aquilo que as pessoas fazem, mas aquilo que elas são – num claro exemplo de “direito penal do inimigo”, em que a conduta individual não importa, mas sim o grupo político ao qual o indivíduo supostamente pertence.
Pedro Vaca conheceu pessoas e histórias de vida que são a razão mesma da existência de uma organização como a CIDH
Contei a Pedro Vaca que essa não é uma mera opinião oriunda da direita (no caso, a principal vítima das violações de direitos humanos), e que até mesmo a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, referindo-se aos inquéritos abertos de ofício por membros da corte, já havia chegado a alertar que o Supremo Tribunal Federal do Brasil se aproximava perigosamente de se tornar um “tribunal de exceção”. Nesse contexto, contei sobre como o meu advogado tentou em vão obter acesso aos autos do meu processo de censura, e de como foi informado de que o processo nem sequer existia. Até hoje, aliás, quando tentamos consultá-lo junto ao sistema de processo eletrônico do TSE, o sistema acusa a sua inexistência. Donde se pode concluir – e fiz questão de dizê-lo a Pedro Vaca – que o processo não é propriamente sigiloso (uma vez que mesmo os processos sigilosos aparecem no mecanismo de busca), mas clandestino. Mais kafkiano impossível...
Encerrei a minha participação rogando aos representantes da Rele-CIDH que tanto o meu quanto todos os casos relatados durante sua visita fossem contemplados no relatório final, a fim de que o documento fizesse jus aos propósitos declarados da organização. Encerrada a reunião, que se prolongou para além do horário previsto, fui para o hotel descansar de um dia agitado. Missão dada, missão cumprida!
Confesso que tentei ao máximo, mas não consegui decifrar o semblante insondável e esfíngico de Pedro Vaca e demais representantes da comissão. Imagino até se os representantes dessas organizações transnacionais não passam por alguma espécie de treinamento para exibir uma fisionomia tão anódina quanto possível... Mas, enfim, acredito que o sujeito não passou em vão por um contato tão frontal com a realidade. Se o que houve ali não foi um evento sobre violação de direitos humanos, eu não sei mais o que teria sido. Ao fim e ao cabo, o resultado do encontro não está sob meu controle. Sem saber se daria certo, restou-me apenas a opção de tentar fazer o certo. E foi assim que deixei Brasília, ao menos, com essa tranquilidade na bagagem...
Flávio Gordon, Gazeta do Povo