Olhe mais um pouco para a foto. Repare nos detalhes. Não, não vale desviar o olhar. Isso, concentração. Reflita bastante. Pense daí que eu penso daqui.| Foto: Ricardo Stuckert/PR
A foto que ilustra e é tema deste texto mostra Lula condecorando Alexandre de Moraes com a Ordem do Rio Branco. O registro, feito pelo fotógrafo oficial do regime, Ricardo Stuckert, mostra um Lula concentrado na difícil tarefa de prender a faixa do ministro. E o ministro olhando fixamente para o egresso do sistema que nos governa. Mais do que admiração, diria que há amor (uma versão perversa de amor) no olhar. Há também certa arrogância, como se Alexandre de Moraes soubesse quem é que, de fato, manda no Brasil: ele mesmo.
(E não vou nem falar de Silvio Almeida, que teve sua existência apagada por Lula na foto. Racismo estrutural, sabe como é. Imagina se fosse o...).
Mas a foto não é só luz, cor e a textura da barba cuidadosamente mal-cuidada de Lula e da calva brilhosa e manchada (tem que ver isso aí, hein?) de Alexandre de Moraes. A foto tem contexto: ela imortalizou a relação, digamos, pra lá de harmônica entre o Poder Judiciário e o Executivo no mesmo dia em que a família de Cleriston Pereira da Cunha velou o corpo do comerciante. De uma vítima do justiçamento “democrático” do STF. De um homem comum esmagado pelo sapato de bico fino do Estado. Como se fosse uma barata golpista, um rato antidemocrático, um nada.
Esse, porém, é apenas o contexto imediato. Porque se eu for falar do contexto amplo, da relação de ódio que esses dois personagens cultivaram com a população brasileira e de como eles estão conseguindo destruir uma sensação de Brasil... E é aqui que entra o título deste texto, no qual pergunto o que você sente ao ver esses dois personagens assim no mesmo enquadramento, no mesmo close, os dois tão perto que é impossível não imaginar que estejam sentindo o bafo um do outro.
Olhe mais um pouco para a foto. Repare nos detalhes. Não, não vale desviar o olhar. Isso, concentração. Reflita bastante. Pense daí que eu penso daqui e volto depois do intertítulo.
Pronto? Pensou?
Se tudo correu como imaginei, você pensou e pensou e não conseguiu frear seus impulsos. Não conseguiu calar o sentimento. Não o culpo. Sendo a política o que é, a manutenção do poder por meio da manipulação da esperança, não é de se surpreender (nem de se repreender) que tenhamos reações emocionais ao vermos a imagem da felicidade, da realização, do sucesso, do ápice de dois sujeitos que representam valores opostos aos nossos.
Comigo aconteceu a mesmíssima coisa. Ao ver a foto, tentei invocar todos aqueles conceitos racionais e abstratos que aprendi com os grandes teóricos. Democracia e liberdade e representatividade e constitucionalismo e tal. Não adiantou nada. Minha revolta só foi um pouco aplacada quando pensei no livre-arbítrio. Aí, por um instante, um átimo, consegui entender, compreender aquele momento sob um prisma outro que não o da indecência pura e simples.
Mas, como disse, foi tudo muito rápido. Vapt, vupt. O que é uma infelicidade, porque de repente me vi fazendo malabarismo com vários porquês. Por que vivemos neste país e justamente nesta época em que prevalece a maldade exibida, maldade vaidosa, maldade condecorada? Por que pessoas como Lula e Alexandre de Moraes alcançam o poder? Aliás, por que eles têm tanto poder? Por que alguém, tendo tanto poder assim, opta sempre pelo erro? E por aí vai.
Os porquês se acumulavam e beiravam a blasfêmia quando me lembrei de algo que Jordan Peterson escreveu em seu “12 Regras” e que, por algum motivo, não é muito comentado: somos nós que damos poder aos nossos inimigos. Tá, “inimigos” talvez seja uma palavra pesada demais. Que tal “adversários”? Pois somos nós que permitimos que nossos adversários nos tirem o sono. Que fomentem essa ira que descamba na revolta contra tudo isso o que está aí. Uma revolta que, no fundo, ou nem tão no fundo assim, é contra a vontade divina que não reconhecemos nem aceitamos.
Dostoiévski
Deixei a foto de lado, me amaldiçoei por ter me detido sobre ela por tanto tempo e tentei me concentrar no que há de bom e belo por aí. No milagre cotidiano de que tanto falo, mas que na prática insisto em ignorar. Tente. É incrível como a raiva passa e a vida adquire um sabor diferente. Senão doce, menos amargo. Um sorriso, uma lufada de vento neste calor, um aperto de mãos, um telefonema da minha mulher, uma fatia de Marta Rocha (coisa de gordo, eu sei), a lembrança de um dia qualquer que se julgava perdido no baú das memórias esquecíveis.
Deu certo. Joguei a foto e a raiva na sarjeta das atribulações diárias e fui dormir embalado pela sabedoria do Dostoiévski velho de guerra. Que nos ensina que essa gente, Alexandre de Moraes e Lula e Janja e Silvio Almeida e Anielle Franco, por mais comendas que recebam, por mais altos que sejam seus salários, por mais poder que tenham e por mais iniquidades que disseminem, são incapazes de uma coisa: calar a própria consciência.
A não ser que sejam psicopatas, você diz. Sinceramente, não acredito nisso. Até porque atribuir a Alexandre de Moraes e a Lula um transtorno psiquiátrico equivale a lhes tirar a responsabilidade por seus erros. Mas eu estava fazendo referência a Dostoiévski e dizendo sobre sermos todos incapazes de calar nossa consciência e continuo: eles sabem o que são. Sabem o que fizeram. Sabem por que fizeram. Sabem por que continuarão fazendo. E disso, da sombra da culpa, eles jamais poderão se livrar. Não deixa de ser um consolo.
Paulo Polzonoff, Gazeta do Povo