segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O setor estatal e a desigualdade de renda

 

Esplanada dos Ministérios, em Brasília.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil


Um tema presente nas discussões econômicas atuais no Brasil e no mundo é a desigualdade de renda entre os habitantes de uma nação. Entre os elementos que fazem parte da má distribuição de renda, e dela são provas destacadas, estão a pobreza e a miséria. Os econometristas, especialistas em calcular e tabular informações econômicas usando fórmulas matemáticas, apresentam a distribuição da renda nacional de várias maneiras. Uma fórmula bastante utilizada para medir o efeito distributivo na economia é a tabulação da renda auferida pela população dividida em dez classes, na qual a renda é demonstrada em ordem decrescente desde a classe 1 até classe 10.

Quando se analisa a renda total nacional interna (que é igual ao Produto Interno Bruto), a primeira questão levantada em relação à distribuição da renda trata de como ela é distribuída entre a parte que constitui a renda do trabalho e a parte que é a renda do capital. A parte da renda da nação que compõe a renda do trabalho é então demonstrada em termos da renda anual obtida por cada uma das dez classes, permitindo identificar o grau de desigualdade entre as classes e, a partir daí, qual o porcentual da população que compõe a faixa dos pobres e miseráveis.

Nessa análise, a população é observada em seu conjunto, independentemente do tipo de trabalho do qual sua renda é derivada, seja do setor público ou do setor privado. De início, aparece uma realidade que imediatamente divide os trabalhadores do país em duas grandes classes: uma é a classe de trabalhadores do setor estatal (prefeituras, estados e União), com renda ao longo da vida (incluindo o período de vida como aposentados) e vantagens que o resto da população não tem, a exemplo de estabilidade no emprego; impossibilidade de demissão por fraco desempenho; aposentadorias exclusivas do funcionalismo público, em certos casos com valores iguais aos salários percebidos na ativa; acúmulos de aposentadorias e vantagens que, em caso de morte do servidor público, são transferidos às viúvas em forma de pensão; salários médios acima da média da população, mesmo em funções equivalentes; férias especiais por períodos longos; benefícios de altos valores, sobretudo nos poderes Legislativo e Judiciário.


O Ipea já demonstrou, em seus estudos, que o setor estatal brasileiro contribui para a concentração de renda, paga salários médios e benefícios acima dos equivalentes no setor privado e responde por parcela substancial da desigualdade de renda no país


Ressalve-se que dentro do próprio serviço público há categorias de baixos salários ou que não gozam de certos benefícios, como os professores de educação básica, policiais e agentes de saúde. Não se trata, portanto, de demonizar os servidores públicos, mesmo porque a maior parte deles entra na carreira por meio de concursos e adere ao estatuto e às regras vigentes. Se as regras mudam – em geral para servidores admitidos após a aprovação de tais regras –, os novos servidores se submetem às novas regras, como se pretendeu quando Dilma Rousseff criou, em 2012, a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo, com a função de operar os benefícios previdenciários complementares aos funcionários da União.

O fato é que o próprio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) já demonstrou, em seus estudos, que o setor estatal brasileiro contribui para a concentração de renda, paga salários médios e benefícios acima dos equivalentes no setor privado e responde por parcela substancial da desigualdade de renda no país. A desigualdade em si não seria um problema grave se as camadas da população nas faixas mais baixas de renda ganhassem o mínimo para um padrão de vida digno e sem carências sérias. Porém, mais de 90% dos trabalhadores brasileiros têm renda inferior a R$ 4 mil por mês (em valores brutos, dos quais são descontos os impostos), e praticamente dois terços deles ganham até dois salários mínimos.

Ao problema da diferença de remuneração do trabalho vigente no setor estatal e no setor privado deve ser acrescentado que o Estado brasileiro agrava a desigualdade de renda em razão de duas características. Uma é o inchaço da máquina pública, que a torna maior do que o necessário para prestar os serviços que presta, ou seja, com número de servidores que, em vários setores, está acima do necessário para as tarefas que o governo desempenha. O inchaço, por certo, não é homogêneo; por ocasião da publicação de outro estudo, mais recente, do Ipea afirmando que a proporção de servidores no total de trabalhadores era menor no Brasil que em vários outros países, lembramos que aquele número não bastava, pois era preciso verificar fatores como a distribuição desses servidores – quantos deles, por exemplo, estavam na “linha de frente” dos serviços e quantos executavam tarefas burocráticas; ou mesmo a distribuição geográfica –, além de analisar que órgãos podem eventualmente apresentar falta de pessoal, enquanto outros poderiam ser enxugados por meio de digitalização e inovação tecnológica. Essas nuances, no entanto, não anulam a conclusão de que o Estado brasileiro padece de certo grau de ineficiência e baixa produtividade. A segunda característica – difícil de medir, mas claramente vista – é o imenso valor apropriado por políticos e funcionários públicos em face da corrupção, fazendo que a renda pessoal dos políticos e desses servidores corruptos seja a soma de suas remunerações legais mais os valores apropriados ilegalmente.

Quanto à desigualdade de renda dos trabalhadores no âmbito do setor privado, ela existe também em alta escala e decorre de circunstâncias típicas da economia capitalista privada, entre as quais estão a incapacidade do sistema produtivo em absorver a totalidade da população em condições de trabalhar, do que decorre o desemprego elevado; o baixo nível da educação de base; deficiências da educação profissional; a baixa taxa de crescimento econômico; e a baixa renda por habitante, que deixa o Brasil no grupo das nações emergentes, mas não desenvolvidas.

A questão central do problema da desigualdade de renda é que as soluções apresentadas por partidos políticos, pelos governos e pelos que dizem defender os pobres em geral propõem mais Estado, mais governo, mais impostos e mais intervenções na economia privada. Isto é, pretende-se resolver por aumento do setor estatal um problema que tem o setor estatal como uma de suas causas. É assim que tem sido no atual governo de maneira explícita, destacando que o tempo todo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ameaça criar impostos, aumentar impostos já existentes e criar outras formas de tomar mais dinheiro da sociedade para cobrir os déficits do governo – déficits esses que resultam do inchaço da máquina pública, da manutenção de dezenas de empresas estatais deficitárias e sem função relevante para a sociedade (a não ser para aqueles que as tripulam como dirigentes ou funcionários), dos gastos descontrolados e dos aumentos de salários e benefícios do sistema estatal nos três poderes.

Na América Latina, o normal tem sido que todo poder e todo Estado, à medida que aumenta, distancia-se dos interesses da sociedade civil, inclusive dos mais pobres, começa a cuidar de si, cria alguns programas para distribuir centavos aos pobres, mas sem tocar nas estruturas que impedem o crescimento robusto da economia e a redução estrutural da pobreza. Por fim, a esperança de avanços reside na mobilização social e pressão (pacífica e legal) feita pela sociedade civil sobre seus governos e seus políticos. A reforma do Estado brasileiro e a redução das desigualdades são do interesse também dos servidores públicos, especialmente da imensa parcela deles que não tem acesso aos altos salários e às altas vantagens.


Gazeta do Povo