quarta-feira, 1 de novembro de 2023

'O que a morte de Shani Louk diz sobre nossos valores morais', por Paulo Polzonoff Jr.

 

Assassinato de Shani Louk é uma chance de avaliarmos se ainda somos humanos ou se já vendemos nossa alma às ideologias e grupos de pressão que nos cercam.| Foto: Reprodução/ Twitter


O assassinato de Shani Louk, a DJ/tatuadora assassinada, despida, possivelmente violentada, mutilada e vilipendiada pelos monstros do Hamas, é uma oportunidade para vermos a quantas andam nossos valores morais. Será que acreditamos mesmo que todas as pessoas são dignas? Ou será que consideramos algumas pessoas mais dignas do que outras só porque elas e eu (i.e., você) pertencemos à mesma patotinha? Por consequência, é uma oportunidade para avaliarmos até que ponto ainda somos humanos e o quanto da nossa alma submetemos às ideologias e grupos de pressão que nos cercam.

Porque, num primeiro momento (confesso constrangidíssimo), tudo o que posso depreender da figura de Shani Louk me causa certa rejeição (repulsa?). Os dreads nos cabelos. Os movimentos na rave. A própria presença numa rave realizada “em nome da paz” naquele lugar específico, pertinho da Faixa de Gaza. Até as profissões atribuídas à moça e as tatuagens são, neste exame superficial da vida alheia, passíveis de análise e, com base em muitos preconceitos, sujeitos a uma absolvição ou condenação sem pena. E parte de mim condena. Infelizmente condena.

E não adianta fazer cara feia porque é assim que agimos todos. A toda hora. Pegamos uma foto ou um vídeo ou um áudio ou mesmo uma frase escrita de uma pessoa e, a partir desse fragmento não raro insignificante e enganador, construímos mentalmente um todo que tomamos por verdadeiro e monolítico. Com base nisso, forjamos ou não amizades e alianças profissionais ou políticas – e até aí tudo bem. O problema é quando passamos a usar as afinidades eletivas como critério para hierarquizarmos as pessoas ou os grupos. E para decidirmos quem deve viver e quem merece morrer. Nem que seja simbolicamente.

De volta a Shani Louk, e com base no todo imperfeito que eu, também imperfeito, fiz a partir das imagens e vídeos, e nos meus próprios preconceitos (“que tipo de gente usa dreads nos cabelos?!”), diria que eu e ela dificilmente combinaríamos. Assim como ela dificilmente combinaria com a maioria dos leitores da Gazeta do Povo que se identificou como conservador depois de fazer o nosso teste político-ideológico. Isso, porém, justifica a morte da moça? Por acaso o mundo hoje está melhor, um tiquinho que seja, só porque Shani Louk e seus confrades de rave morreram do jeito que morreram?


Não

Estou cruzando os dedos aqui para que você tenha respondido negativamente às duas perguntas. Minto, tenho certeza de que você é humano e, por isso, apesar das paixões ideológicas, das preferências políticas e até da raiva que lhe (nos) causa esse ser mítico chamado “jovem”, respondeu negativamente às perguntas. E é com base nesta certeza que continuo este texto. Não vá me decepcionar, hein?

Não – respondo à minha própria pergunta. A imagem nada admirável que eu possa fazer de Shani Louk ou de qualquer outra vítima dos ataques terroristas do Hamas (ou mesmo da violência urbana que assola o Brasil) não justifica o assassinato brutal dessas pessoas. Mesmo que elas sejam frequentadoras de raves (ou bailes funks), mesmo que sejam usuárias de drogas, mesmo que sejam comunistas, abortistas, petistas. Mesmo que, em vida, elas possam ter atacado valores que são sagrados para mim. Como, por exemplo, o da dignidade humana.

Não – insisto, até porque foram duas as perguntas que propus antes do intertítulo. O mundo não está melhor hoje porque Shani Louk morreu. Nem porque, durante o ataque do Hamas à rave, morreram outras tantas dezenas de jovens que, se soubessem da minha existência e de minhas ideias, talvez me xingassem ou desejassem a minha morte (simbólica, espero). Aliás, o mundo raramente fica melhor só por causa da morte de uma pessoa, seja ela uma simples millennial hedonista ou um líder político desses que parecem abrir a boca só para nos irritar. Né, Lula?

O fato é que é fácil, muito fácil, facílimo se solidarizar ou, para usar uma expressão da moda, ter empatia por aqueles com quem simpatizamos. Por pessoas que comungam das mesmas ideias e valores que os nossos. Difícil mesmo (e bota difícil aí!), e por isso muito mais nobre e cristão, é se solidarizar e ter empatia por nossos inimigos (adversários? desafetos?) quando de uma tragédia ou uma injustiça. E não precisa ser um ataque terrorista, não. Qualquer sofrimentozinho dos nossos inimigos é digno de compaixão. Ou pelo menos deveria ser – e não sou eu quem estou dizendo, hein!

Ah, e antes que alguém venha querer me pegar no contrapé da compaixão seletiva, acrescento: o mesmo raciocínio serve para as centenas ou até milhares de palestinos civis que certamente serão vítimas colaterais dessa guerra. Até porque não existe retaliação totalmente proporcional nem perfeitamente justa. São inimigos do Ocidente? A maioria, talvez. Querem a destruição de Israel? Diria que sim. Odeiam os valores cristãos? Provavelmente. Mas são sobretudo seres humanos que merecem que nos compadeçamos de seus destinos. Aqui e no Além.


Paulo Polzonoff Jr., Gazeta do Povo