sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

'A briga pela liberdade', por Gabriel de Arruda Castro

 

Foto: Shutterstock

O movimento dos caminhoneiros canadenses se transformou num símbolo da luta contra o autoritarismo


OTTAWA — Domingo, 20 de fevereiro. Faz 15 graus negativos e as ruas de Ottawa estão cobertas de neve. O vento no alto da Colina do Parlamento, na capital do Canadá, torna a sensação térmica ainda mais gélida. Não há carros nas ruas, e as únicas pessoas do lado de fora são alguns curiosos que assistem à ação da Polícia Nacional Montada do Canadá — o equivalente à Polícia Federal. Os policiais removem os últimos veículos deixados pelos manifestantes que, por três semanas, ocuparam pacificamente o centro de Ottawa para protestar contra as medidas restritivas implementadas pelo governo sob o pretexto de combater a covid-19.

Não se passa por uma esquina sem cruzar com um policial. Algumas ruas estão bloqueadas por barreiras de concreto. Nas proximidades do Parlamento, quarteirões que normalmente têm um comércio movimentado agora estão completamente inacessíveis, bloqueados por grades construídas da noite para o dia. Tudo lembra um estado de sítio. E, em certa medida, a realidade não é muito diferente: o país entrou em estado de emergência em 14 de fevereiro, quando o primeiro-ministro, Justin Trudeau, aumentou os próprios poderes sob o pretexto de desmobilizar a manifestação dos motoristas de caminhão, classificada pelo governo como ilegal e antidemocrática.

Ruas bloqueadas perto do Parlamento, no Canadá | Foto: Gabriel de Arruda Castro

Se o “Comboio da Liberdade” dos caminhoneiros canadenses foi de fato uma tentativa de golpe, como afirma o governo, provavelmente foi a tentativa de golpe mais lenta do mundo. Durante três semanas, algumas centenas de motoristas de caminhão ocuparam o centro de Ottawa. Fora as buzinas constantes e os problemas de trânsito, eles não incomodaram: não houve atos violentos nem tentativas de remover os atuais ocupantes do poder. Os manifestantes pediam, dentre outras coisas, o fim da exigência de vacinação e de exames de covid para caminhoneiros que trabalham na fronteira com os Estados Unidos. E nada muito além disso. “Nós não temos nenhum interesse em interferir nos mecanismos de governo”, disse Tom Marazzo, um dos líderes do movimento, durante entrevista coletiva no auge da manifestação. “Nós só queremos acabar com a obrigatoriedade de vacinação e do uso de máscara.”

O primeiro-ministro, Justin Trudeau, entretanto, viu no movimento uma ameaça. Amedrontado, deixou a capital e passou dias em uma localização desconhecida. Ao ver que os manifestantes não cederiam, decretou poderes emergenciais. Somente na última segunda-feira (21) é que a medida foi formalmente aceita pelo Parlamento, por 185 votos a 151. Antes disso, entretanto, o governo canadense já havia utilizado as novas prerrogativas para tomar uma medida extrema: o bloqueio das contas bancárias dos manifestantes. A decisão também se estendeu às plataformas de crowdfunding usadas pelos organizadores do Comboio da Liberdade.

Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá | Foto: Gints Ivuskans/Shutterstock

A reação desproporcional foi recebida com críticas dos opositores de Trudeau e causou repercussão internacional. O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, deixou evidente a perda de credibilidade de um regime antes visto como modelo: “São essas as pessoas que gostam de dar lições a outros países sobre democracia e liberdade? Este é um dos países no topo do ranking da democracia? Sua credibilidade nesses temas agora vale zero”, escreveu Bukele.

De acordo com a Freedom House, que classifica os países de acordo com o nível de suas democracias, o Canadá é um dos cinco países mais democráticos do mundo. Na última edição, lançada no ano passado, o Canadá recebeu nota 98, em uma escala de 0 a 100. No mesmo índice, o Brasil tem 74 pontos; os Estados Unidos, 83; e a Alemanha, 94. Talvez seja hora de rever a nota dada ao Canadá.

No último fim de semana, ainda antes que o Parlamento referendasse os poderes adicionais, a polícia de Trudeau também havia começado a prender os manifestantes (oficialmente, 191 foram detidos) e confiscar os caminhões daqueles que o governo classificou como “manifestantes ilegais”. Em seus comunicados, a Polícia de Ottawa foi direta: a mera participação nas manifestações seria tratada como crime. “Se você está envolvido nesse protesto, nós vamos buscar identificá-lo e prosseguir com sanções financeiras e indiciamentos criminais”, afirmou a corporação.

O que restou do protesto

Quando a reportagem de Oeste esteve na área central de Ottawa, dentro da “zona de segurança” delineada por Trudeau, os restos da manifestação desfeita à força pela polícia estavam por toda parte — inclusive caminhões abandonados, cujos donos haviam sido presos horas antes pela polícia.

Sobras da manifestação na área central de Ottawa | Foto: Gabriel de Arruda Castro

Ao longo das três semanas, o movimento dos caminhoneiros ultrapassou a causa inicial: virou um símbolo de canadenses cansados das muitas restrições impostas pelo governo nacional e pelas autoridades locais. Mesmo depois da remoção forçada dos caminhoneiros, aqui e ali, canadenses ainda se manifestavam na capital do país. O engenheiro Andrew Wart mora a quase 600 quilômetros de Ottawa, mas resolveu ir à capital com sua família para expressar seu apoio ao movimento. Mesmo a pé, não conseguiu chegar nem perto do Parlamento. “Essas medidas do governo são totalitárias”, disse ele a Oeste, acompanhado da mulher e das três crianças do casal. “Eles não podem interferir na nossa liberdade dada por Deus, e é o nosso dever lutar contra isso.”

O sentimento de esgotamento com a incessante, e pouco eficaz, batalha contra a covid-19 parece ser especialmente grande no Canadá

Até mesmo moradores de Ottawa — que sofreram com as buzinas e os problemas de trânsito — demonstram simpatia com a atitude dos caminhoneiros. Algumas lojas na cidade ainda exibem faixas com expressões como “Lute pela Liberdade” ou “Sejam bem-vindos, caminhoneiros” — embora de um apartamento no centro da capital uma faixa dirigida aos manifestantes afirme “Vão para casa. Vocês são uma desgraça para o Canadá”.

Lojas demonstram apoio ao Movimento pela Liberdade | Foto: Gabriel de Arruda Castro

Apesar de crer que alguns caminhoneiros tenham se excedido ao fazer exigências pouco realistas, como a renúncia do primeiro-ministro, o aposentado Daniel Wasselnuk, que mora a poucos quarteirões do Parlamento, pensa que as críticas às medidas adotadas pelo governo durante a pandemia são justas. “Eles passaram do limite, e as pessoas estão cansadas”, acredita Wasselnuk. “Por exemplo: o governo não deveria impedir o funcionamento das igrejas.” Ele conta que muitas pessoas passarão a apoiar o PPC, partido de direita fundado em 2018 e cujo líder, Maxime Bernier, esteve em Ottawa em apoio ao protesto dos caminhoneiros. “Não há justificativa para Trudeau invocar o Ato de Emergências”, disse Bernier, na última quarta-feira (23), depois de o Parlamento confirmar a extensão dos poderes de Trudeau. “Não há emergência. É só acúmulo de poder.”

Poucas horas depois, o governo canadense anunciou a revogação da medida. Trudeau afirmou que os poderes adicionais já não eram necessários. Talvez o recuo tenha vindo tarde demais para recuperar a popularidade do primeiro-ministro.

O canadense Daniel Wasselnuk discorda das medidas adotadas pelo governo | Foto: Gabriel de Arruda Castro

O sentimento de esgotamento com a incessante, e pouco eficaz, batalha contra a covid-19 parece ser especialmente grande no Canadá, um dos países com medidas mais rigorosas durante a pandemia. Nas principais regiões do país, é preciso comprovar a vacinação para ir a vários lugares, como restaurantes. Em Quebec, até mesmo para comprar maconha (legal) é preciso mostrar o comprovante de vacina. Na mesma Província, o governo local anunciou que até as igrejas deveriam cobrar comprovantes de vacina. Nesta semana, depois da reação negativa, voltou atrás. Em Toronto, as igrejas não podem ter mais de 50 pessoas. O comboio dos caminhoneiros pode ter sido a primeira reação clara aos excessos do governo. Segundo o Instituto Angus Reid, uma organização independente, a rejeição a Trudeau atingiu quase 60% nesta semana. É um dos piores números do mandato dele.

Manifestante participa do Comboio pela Liberdade | Foto: Benoit Daoust/Shutterstock

O Parlamento canadense fica no alto de uma colina em Ottawa, às margens do rio que dá nome à cidade. Não é por acaso: assim como na Grécia antiga e sua Acrópole, a elevação física é um símbolo de poder. Pelo menos simbolicamente, por três semanas, a pequena acrópole canadense foi ocupada pelos caminhoneiros, grande parte dos quais vive no interior do país, longe dos debates políticos. Depois de ter recorrido a poderes emergenciais, Trudeau conseguiu se livrar dos manifestantes incômodos. Mas o som das buzinas continua a ecoar pelo país: na última semana, grandes protestos foram vistos em Calgary, na região oeste. Pode ser o começo de um novo movimento.

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Revista Oeste