quinta-feira, 20 de abril de 2017

"Roubalheira contaminou a política externa, mas há espaço para mudança", por Matias Spektor

Carlos Garcia Rawlins - 26.jan.2017/Reuters
Homem passa em frente a local de obra da Odebrecht em Caracas, capital da Venezuela
Homem passa em frente a local de obra da Odebrecht em Caracas, capital da Venezuela

Folha de São Paulo

As delações liberadas revelam o grau de contaminação que aflige as relações exteriores do país. Atônito, o cidadão aprendeu sobre a conexão entre política externa e roubalheira : operações em terceiros países serviram para gerar, guardar, esconder ou distribuir recursos ilegais, numa história que envolve políticos, empreiteiras e diplomacia com governos amigos no exterior.

No próximo dia 1º de junho saberemos mais, graças à liberação de informações hoje sigilosas. Mas já há evidência suficiente para mapear o problema.

A dobradinha entre Odebrecht e Planalto em Angola, Argentina, Cuba e Venezuela trocou engenharia e influência política por contratos polpudos, financiados a crédito subsidiado pelo trabalhador brasileiro. Por vezes, o Brasil foi receptor, como se vê com a França, nos casos do submarino nuclear e da hidrelétrica de Jirau.

As delações ainda mostram que a "diplomacia das empreiteiras" não é de hoje, mas herança da ditadura, muito aperfeiçoada na democracia. Sabe-se também que o impacto disso no exterior tem tons de cinza: em Angola, a Odebrecht ajudou a consolidar uma cleptocracia autoritária no poder, mas também reconstruiu um país devastado pela guerra.

A "diplomacia das empreiteiras" concentrou renda, mas desenvolveu tecnologia de ponta. E a criação de multinacionais brasileiras é um objetivo a ser preservado.

Graças à Lava Jato, o país poderá começar a limpar a podridão que impregnou parte da política externa. A solução passa, no início, por redobrar os compromissos internacionais pró-transparência e anticorrupção. Por exemplo, quando assinamos um acordo com a OCDE contra a evasão fiscal, larápios foram postos para correr. Quando o MP assinou acordos de cooperação lá fora, ganhou dentes que antes não tinha. É necessário fazer mais. Não porque esses compromissos criem sanções estritas (não criam), mas porque abrem espaço para começar a limpeza.

A prioridade é impedir que a política externa fique refém de grupos capazes de comprar acesso privilegiado. Será uma batalha dura, como acontece em toda democracia capitalista desenvolvida. Mas precisamos tentar, porque o custo da inação é alto demais.

Qualquer empreitada dessa natureza será criticada pelas viúvas do regime que acobertou a podridão, claro. Tais compromissos serão denunciados como "antinacionais", em nome da "autonomia" e da "altivez".

É bom bater de frente contra esse argumento mole. Antinacional foi a ladroagem que, enrolada numa bandeira verde-amarela, usou dinheiro público em detrimento do povo brasileiro.

Quando autonomia significa blindagem para a classe política, o resto da sociedade amarga pura dependência. O tempo dessa gente chegou ao fim.

Matias Spektor É doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV