quinta-feira, 20 de abril de 2017

Hilberto Mascarenhas: O gerente da corrupção

Flávia Tavares - Epoca


Nos palavrões e na desfaçatez do diretor do setor de propinas da Odebrecht está a alma de um esquema sofisticado só na aparência




Marcelo Odebrecht convocou Hilberto Mascarenhas em sua sala, no edifício Villa Lobos, em São Paulo, para uma conversa sobre o crescimento da empreiteira nos próximos anos. Era 2006 e os negócios eram auspiciosos. Marcelo, então presidente da Construtora Norberto Odebrecht, sabia que, um dia, seria chamado a assumir a holding, a empresa-mãe do grupo baiano. E queria iniciar seu legado montando um departamento inovador, capaz de lidar com enormes montantes de recursos e fornecedores VIPs. Mascarenhas era o homem para chefiar o novo setor. Já estava na empresa havia 30 anos, era de confiança, tinha capacidade de gerência, era discreto. Era também um tanto bonachão – e ia precisar desse atributo na nova lida. Ele tinha até um nome e uma figura apropriados: Mascarenhas, gorducho e careca, poderia bem ser sobrenome de personagem de Nelson Rodrigues, um daqueles burocratas eficientes, detentor de sórdidos segredos. Ele era o homem para criar e comandar o Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, o SOE. Quando Marcelo disse a Mascarenhas o que esperava do subordinado, ouviu, surpreso, um “não” como resposta. Impositivo, explicou que não se tratava de um convite recusável. “Então, não é um convite, é uma intimação”, retrucou Mascarenhas. “Qual é a diferença?”, perguntou Marcelo. “Intimação é muito mais caro.” O chefe assegurou que Mascarenhas não precisava se preocupar, que seria bem recompensado. Ele, então, aceitou o cargo.

Foi o próprio Mascarenhas quem relatou essa história, com um sorriso passeando nos lábios, aos procuradores da Lava Jato, em 14 de dezembro do ano passado. Em um dos depoimentos que prestou como delator, o baiano detalhou com minúcias como organizou a área da Odebrecht responsável pelo pagamento de propinas a agentes públicos de todos os tipos por quase uma década. Dos episódios do Netflix da Odebrecht que vieram a público, esse talvez seja a síntese mais bem-acabada de como a corrupção se confecciona e se infiltra a ponto de se tornar banal. Tão banal quanto um pequeno departamento numa imensa corporação – “um cantinho ali no 16o andar”. Com o desfrute de quem não tem absolutamente nada a perder, Mascarenhas, o gerente da corrupção, descreve no vídeo as entranhas do sistema por ele montado para garantir que corrompidos e corruptores selassem suas negociatas. O pequeno departamento, que contava com cinco funcionários, incluindo Mascarenhas, movimentou US$ 3,37 bilhões em oito anos.

De cara, Mascarenhas conta que ganhou a confiança da família Odebrecht e ascendeu na companhia de uma maneira bem brasileira e bem típica da cultura Odebrecht: via Q.I. Seu pai foi presidente do Banco do Nordeste; seu padrinho, conselheiro da Odebrecht. Some-se a esses predicados familiares a questão geográfica. “Todos somos baianos”, resume Mascarenhas. A proximidade do gerente da corrupção com Emílio Odebrecht o levou a frequentar a casa de praia da família. Na carreira na empreiteira, Mascarenhas ocupou cargos em diferentes braços da empresa, sempre na área financeira. Por tudo isso, quando Marcelo precisou de alguém para estruturar as operações estruturadas, não teve de procurar muito. Previamente, já havia uma dupla responsável por pagar propinas: Antonio Ferreira Neto e Maria Lúcia Tavares, a operadora que primeiro delatou aos investigadores a existência do departamento. Mas era coisa miúda, que movimentava merrecas em torno de US$ 70 milhões por ano. Mascarenhas assumiu a área e elevou a movimentação para a estratosfera, chegando a US$ 730 milhões em 2012 e 2013. Ao relatar suas funções aos procuradores, Mascarenhas evita os termos “corrupção” e  “caixa dois”, entre outros. Recorre ao eufemismo “esse assunto”. Ele conta que precisou convocar subalternos de confiança para ajudar. “Nesse assunto, não existe outra forma de ser se não for na confiança. Se alguém quisesse desviar [recursos do setor], desviaria, e você não teria como reclamar. Ia reclamar de quê? De um recurso não contabilizado?” Mascarenhas ri despudoradamente.

O gerente manteve Maria Lúcia e chamou Fernando Migliaccio para a equipe, que ainda contava com Luiz Eduardo Soares e Angela Palmeira. A turma adaptou um sistema que a Odebrecht já usava para organizar contas, o My Web Day, e o chamou de My Web Day B – e bota B nisso. Os recursos usados pelo SOE para pagar propinas vinham de outro departamento, o de Geração, e Mascarenhas garante não saber como esse caixa dois era gerado. Sabe bem o que acontecia dali em diante. Até 2009, antes de assumir finalmente a holding, Marcelo Odebrecht era quem dava o o.k. para o pagamento de propinas. Naquele ano, Marcelo determinou que a autorização para a paga de obras ficaria a cargo dos “líderes empresariais”, no jargão da empresa, responsáveis pela obra em questão. Ele trataria somente dos políticos. “Marcelo me f...deu, deu, deu. Eu tinha um chefe, passei a ter seis”, Mascarenhas reclama. A comunicação com os agraciados com a bola se dava pelo Drousys, sistema cuja base de dados fica na Suíça. Tudo soa muito sofisticado. Mas não se engane. Isso é Brasil. O sistema pouco tinha de sofisticado. E Mascarenhas é, acima de tudo, um brasileiro corrupto. Usou de artimanhas antigas, como a utilização de senhas e codinomes, para a prática tão antiga quanto de subornar agentes públicos. Só deu uma roupagem profissional à coisa, com offshores, doleiros e caminhos mais intricados para o percurso da grana. Ao explicar aos procuradores os truques que usava para driblar a fiscalização dos bancos no exterior e a área de compliance, Mascarenhas dá um gostoso bocejo. “Também tô com sono, pode abrir a boca”, ele autoriza os interlocutores.

Embora soe orgulhoso do tamanho do negócio que passou a chefiar, Mascarenhas jura que se preocupava com a quantidade de pessoas que sabiam da existência de seu obscuro departamento – que, em tese, deveria ser tão secreto quanto a divisão de combate a alienígenas dos Homens de preto, mas não era – e com o montante de propina que vinha sendo movimentada. “Estava virando um prazer o cara comprar alguém”, diz. Mascarenhas é o trovador da sacanagem na Odebrecht. Ele conta que reclamou com Marcelo seguidamente. “Não dá, cara! Vai chegar em quanto?”, disse ao chefe. Como prova, Mascarenhas apresenta um e-mail em que Marcelo diz que pediu para os “líderes empresariais” maneirarem na gastança. “Acho que o pessoal já entendeu a necessidade da seletividade”, escreve Marcelo, em dezembro de 2014, quando a Lava Jato já botava para quebrar. Coisa de um mês depois, Marcelo ordenou que o SOE fosse transferido para o exterior e Migliaccio e Luiz se mudaram para Miami. Marcelo, então, chamou Mascarenhas a sua sala novamente. Era hora de o funcionário exemplar encerrar seus serviços. “Perfeitamente”, disse Mascarenhas. Com 40 anos de empresa àquela altura e 60 de vida, Mascarenhas se aposentou. Marcelo foi preso dois meses depois. Mascarenhas, em março deste ano. Mas ele é um brasileiro e não desiste nunca. “Quero curtir a minha vida quando vocês tirarem esse negócio do meu pé”, aponta para a tornozeleira eletrônica, “e eu puder viajar, curtir o que eu, os 40 anos que eu trabalhei...”. Vai, Mascarenhas, vai ser feliz. Sua missão no almanaque brasileiro da corrupção foi devidamente cumprida.