Tribuna da Bahia
As imagens, diálogos, desempenhos e direção das cenas de abertura de "Velho Chico", somados ao desenrolar dos primeiros capítulos do novo folhetim das 9h, da TV Globo, apontam para outro marco da teledramaturgia nacional, no meio da crise política, moral e econômica, e da geléia geral que os jornais do Brasil e do mundo anunciam. Não poderiam ser mais belos, ardentes e emblemáticos, em sua composição cênica e conteúdo de textos e contextos humanos, amorosos, religiosos e sociais. Magnífico painel, também, de desempenhos artísticos, a começar pela breve mas gloriosa passagem de Tarcísio Meira.
Pelo empolgante cartão de visita, a nova história levada à telinha, por Benedito Ruy Barbosa, tem um atrativo a mais: apresenta-se como oportunidade - cada vez mais rara nestes dias de tumultos, diálogos rasteiros e escatológicos de governantes, ministros, parlamentares, ex-primeira dama, que até então parecia um túmulo de silencio e recatamento, entre outros -, para confrontar e refletir sobre "dois brasis" que há décadas se encaram sem se ver mutuamente.
O de Brasília (da presidente sob tutela e quase desvario, como se viu nesta sexta-feira, 18, em Feira de Santana) e o de Paulo Afonso: simbólica cidade nordestina relegada ao esquecimento, na tríplice divisa da Bahia com Alagoas e Pernambuco.
Esquecimento que este jornalista imagina, há muitas décadas, ser algo venenoso e grosseiramente proposital. Política, administrativa e ideologicamente planejado, em razão da origem getulista do lugar onde nos anos 50 se construiu,no esturricado Nordeste, a hidrelétrica da CHESF. Marco da engenharia nacional, da modernização e desenvolvimento do País, da visão governamental em perspectiva de futuro, além da força insuperável de seus trabalhadores e da sua gente.
Tudo o que governos, administradores e partido míopes (para dizer o mínimo) - do tipo dos que nos comandam atualmente - mais abominam, estupidamente. Afinal, julgam-se os criadores e fundadores de tudo, ou quase. Não só pensam como propagam, a exemplo do que fez Dilma, ontem, na Bahia, que o Brasil começou no ABC paulista, ou mais propriamente, há cerca de 14 anos, quando Lula, fundador e guia do PT aportou no Palácio do Planalto.
Digo em imitação e tributo ao conterrâneo jornalista Sebastião Nery, na magnífica introdução de "Rompendo o Cerco" (dos discursos, pensamentos em Decálogo do Estadista, de Ulysses Guimarães) repetido no título de seu livro mais recente: "Ninguém me contou, eu vi”. Nascido nas barrancas baianas do São Francisco, vivi os melhores e mais reveladores anos da minha infância e formação na cidade de Santo Antonio da Glória, município que abrigava Paulo Afonso como um de seus distritos – no Governo Getúlio Vargas - quando começou a formação do formigueiro humano na beira da cachoeira, para a construção da barragem monumental e da usina da Companhia Hidrelétrica do São Francisco.
Estava na praça central da Vila Poty, aos 10 anos de idade, quando o serviço de alto falante local deu a notícia do suicídio de Vargas. Jamais vi, no coração de uma cidade e nos olhos de um povo, tamanha dor e consternação. Vi, em seguida, o presidente Dutra continuar a construção e estava na mesma praça no dia em que o presidente Café Filho desceu no aeroporto para inaugurar a obra monumental.
Depois vieram anos seguidos de esforços políticos e ideológicos de governos diferentes, (em fases ditatoriais ou democráticas), para jogar tudo isso no fosso do esquecimento mais medíocre e sorrateiro. Coisa de serpentes, de jararacas, para usar como referência a cobra da mod aneste quase final de Quaresma de um Brasil em transe.
De repente, eis que a novela das nove redescobre o rio da minha aldeia, e coloca Brasília e Paulo Afonso diante um do outro, com toda a força histórica e simbologias. A exemplo do folhetim "Lampião e Maria Bonita", com todos os conflitos das grandes paixões amorosas e da política, no Raso da Catarina, deserto nordestino e santuário ecológico, habitat de serpentes, mas também de doces umbus, araticuns e outras frutas típicas. Ao lado de belas flores exóticas que nascem e crescem à beira de cavernas, onde Lampião e seus cangaceiros se abrigavam das "volantes" policiais, e Maria Bonita se enfeitava no pouso entre combates.
No começo da novela, o Brasil atravessa o ano de 1968, aquele que não terminou. E aparece um rio que não existe mais: as águas correm fartas, caudalosas e livres como as que passavam quase no quintal da casa da minha infância em Glória. A cidade original, por sinal, também desapareceu. Foi tragada pelas águas do lago artificial formado quando da construção de uma das usinas da CHESF, já na época da ditadura. A Nova Glória virou um bairro na periferia de Paulo Afonso. E aí se inicia a exploração selvagem, predatória e devastadora do rio.
Que só se agrava ao passar do tempo: o rio se transforma em reservatório de exploração político eleitoral e grossa corrupção no conluio do antes públicos com grandes empreiteiras privadas, principalmente nos últimos 14 anos dos governos petistas de Lula e Dilma. Anos do engodo do projeto de transposição das águas do São Francisco. "Velho Chico", a novela, começa a se desfiar a partir de uma lenda, "que une a história do rio com o foco da trama", sintetiza o autor. "Uma índia chora de saudade de seu grande amor, um guerreiro. Das suas lágrimas, surge a nascente do São Francisco", escreve uma comentarista de TV. Em 1968, (época retratad a no início da novela) as águas do rio eram fartas. Muitas famílias castigadas pela seca foram para as regiões banhadas pelo São Francisco, fugindo da fome, da sede, da miséria. A partir de uma lenda, a novela une a história do rio com o foco da trama, o amor.
Na telinha, o impacto de realidade na abertura do novo folhetim da Globo. Caetano Veloso canta "Tropicalia", uma composição marcante gravada em 68, com a força, intensidade e atualidade de uma música que o baiano de Santo Amaro da Purificação tivesse feito ontem: "Sobre a cabeça os aviões/ Sob os meus pés, os caminhões/ Aponta contra os chapadões, meu nariz./ Eu organizo o movimento/ Eu oriento o carnaval/ Eu inauguro o monumento/ No planalto central do país”.
E segue "Velho Chico" em seus primeiros e significativos momentos. De impacto, relevância e simbologias, ainda mais marcantes pelas possibilidades de reflexões e comparações que o folhetim oferece, nestes dias de março de 2016, nesta semana de revelações, espantos e explosões indignadas nas ruas do Brasil. Mais que recomendável uma novela assim. No tempo em que as serpentes andam soltas e que o procurador Deltan Dellagnol, da Lava Jato, define, com ajuda do juiz Sérgio Moro, como época da "guerra desleal e subterrânea, travada nas sombras, longe dos tribunais".
Que "Velho Chico" e a força do rio da minha aldeia (mesmo que sangrando de morte) ajudem a lançar luzes sobre os atuais tortuosos e temerários caminhos do Brasil. A conferir.
Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. E-mail: vitor_soares@1.com.br