domingo, 19 de abril de 2015

"Sonho, utopia e realidade", por Dorrit Harazim

O Globo


Agora completo e digitalmente restaurado, ‘Memória dos campos’ está com exibição anunciada para 2015


O baú de novidades do festival de documentários É Tudo Verdade, cuja edição 2015 se encerra hoje, trouxe o oportuno “A noite cairá”, do inglês André Singer. Oportuno por narrar a feitura, posterior supressão e recente restauro digital do extraordinário “Memory of the Camps” (“Memória dos campos”), filmado 70 anos atrás.

“Memory of the Camps” fora planejado para se tornar o “filme oficial” do Comando Supremo das Forças Aliadas. A partir da primavera de 1945 equipes de câmeras dos exércitos russo, americano e britânico passaram a captar o momento da libertação dos campos de concentração e de extermínio nazistas que iam encontrando pelo caminho.

Era preciso, sobretudo, recolher provas irrefutáveis das atrocidades e aberrações encontradas para eliminar a possibilidade de contestações futuras. Para isso, nenhum detalhe podia ser poupado. Foram filmados desde o interior de fornos crematórios ainda fumegantes, com sobras de pedaços humanos, até a exposição propositalmente lenta e testemunhal de cadáveres. As pilhas de corpos nus, alvíssimos, dos quais todo sangue se esvaíra, vão sendo encontradas ora ao acaso, esparramadas pelo chão, ora em grupos que lembram bonecos desarticulados. Formam morrotes, quase montanhas, ou preenchem valas. Em pilhas carbonizadas de formas contorcidas, algumas cabeças despontam, erguidas — em busca, talvez, da lufada de ar que não veio.

“Jamais poderíamos associar o que víamos às nossas próprias vidas (...) Era outro mundo. Se nos envolvêssemos naquilo, teríamos enlouquecido”, testemunha um dos operadores de câmera instruído a filmar sem complacência.

Para a montagem do filme, o produtor Sidney Bernstein chegou a acionar Alfred Hitchcock, que atravessou o Atlântico e passou o mês de julho de 1945 supervisionando os trabalhos. Ao que se sabe, Hitch deu dois pitacos, ambos cruciais.

Primeiro, recomendou a inclusão de mapas para assinalar a localização geográfica dos campos, e de imagens do entorno para demonstrar que os abatedouros de seis milhões de pessoas não ficavam isolados no espaço. Não longe, havia cidades e vilarejos onde a vida ariana prosseguia o seu curso. Hitchcock também recomendou a inclusão de planos-sequência que mostrassem a guarda nazista para atestar que nada, nos campos, era montagem ou filmado a posteriori.

Mas o projeto de filme pedagógico descarrilhou no próprio ano de 1945, quando a Inglaterra optou por adiar o acerto de contas com a Alemanha diante da rápida mudança do cenário geopolítico. Com a Guerra Fria despontando no horizonte, Londres achou melhor priorizar a reconstrução do país derrotado do que apontar para a culpa coletiva dos alemães.

Acabou por arquivar nas prateleiras do Museu Imperial de Guerra britânico os rolos originais de “Memory of the Camps”, que ali permaneceram por mais de 30 anos. E talvez ainda ali estariam não fosse a sua descoberta por um pesquisador americano em 1984. A partir daí, o material foi montado, acrescido de um texto forte narrado pelo ator Trevor Howard e exibido no ano seguinte pelo canal público americano PBS.

Apesar do colossal impacto da transmissão, era uma obra inacabada, imperfeita e capenga. Faltava-lhe um lote crucial, tido com perdido: o registro da libertação de Auschwitz-Birkenau e Maidanek pelas tropas soviéticas. Foi somente após a implosão da URSS em 1991que as tratativas entre arquivistas russos e ocidentais retomaram o seu curso. E, mesmo assim, foi preciso esperar outro quarto de século para o filme planejado na primavera de 1945 estar concluído.

Agora completo e digitalmente restaurado, “Memória dos campos” está com exibição anunciada para 2015. Diante da recaída do mundo numa esquisita Guerra Fria pós-moderna, melhor que seja logo. No documentário “A noite cairá” que reconstitui e atualiza essa saga, o título deriva do depoimento de um dos sobreviventes entrevistados por Singer: “Se o mundo não aprender o que ensinam essas imagens, a noite cairá”.

A noite caiu de forma diversa para dois homens que morreram esta semana e cujas vidas e obras se entrelaçam com a história dos campos. Um era alemão, estava com 87 anos e tinha 6 quando Hitler chegou ao poder. Aos 10, juntou-se à Juventude Hitlerista e aos 16, último ano da guerra, vestiu o uniforme das Waffen-SS, a temida tropa de elite nazista. Aos 17 viu-se prisioneiro de guerra dos Aliados.

Günter Grass tornou-se o escritor mais aclamado no pós-guerra de uma Alemanha em busca de compasso. Expressou como ninguém a má consciência do país decidido a exorcizar o passado e foi merecedor do Nobel de Literatura em 1999. Contudo, o admirável autor de “O tambor” e “Passo de caranguejo” levou 60 anos para se confrontar publicamente com o próprio passado nas SS. Polêmico e incompreendido a vida toda, o cidadão Grass não conseguiu alcançar a liberdade de sonhar.

François Maspéro era francês e viveu 83 anos. Tinha 12 quando os pais foram deportados e era adolescente quando perdeu o irmão de 19 em combate com os alemães. Morreu no último sábado, 11 de abril, exatos 70 anos após a libertação do campo de Buchenwald, de onde o pai não saiu com vida. Sua livraria parisiense La Joie de Lire, na Rua Saint-Séverin, foi um oásis de descolonização intelectual. Como editor de livros, apresentou o martinicano Frantz Fanon à Europa e transformou “Os condenados da terra” na bíblia do terceiro-mundismo. Escreveu romances, traduziu 80 obras de autores não europeus, publicou Saul Steinberg e Chase Adams.

Explicava assim a sua maneira de ser livre: “Faço uma diferença enorme entre sonho e utopia. Utopias sempre desembocam em exemplos negativos. Qualquer que sejam sua natureza ou origem, elas acabam em catástrofe. Já um indivíduo sem sonho para si ou para a sociedade em que vive não está à altura de sua vocação de ser humano. É preciso sonhar com algum futuro. Mesmo sabendo que o futuro é como a linha do horizonte: ela recua à medida que avançamos”.