Há duas semanas, a mão, e não a voz, foi o principal instrumento de trabalho do
narrador Galvão Bueno , de 64 anos. Ele fez concorridas noites de autógrafo em São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro de
Fala, Galvão! . O livro foi escrito a quatro mãos com o jornalista Ingo Ostrovsky e, nele, Galvão conta histórias de sua carreira, iniciada em 1974. Na tarde da sexta-feira (10), ao retornar para Londrina, onde mora com a mulher, Desirée, e o filho caçula, Luca, de 14 anos, Galvão deu esta entrevista a ÉPOCA, em que
fala de seu jeito de ser, do fatídico “10 a 1” na Copa do Mundo , de Ayrton Senna, Pelé e Ronaldo Fenômeno . No dia seguinte, ele embarcaria rumo a sua vinícola no interior do Rio Grande do Sul, para se reunir com o enólogo e preparar o corte de um novo vinho.
“Sou por natureza um vendedor e um contador de histórias”, diz ele.
ÉPOCA – Por que decidiu fazer o livro? O título é uma referência bem-humorada àquela história do “cala a boca, Galvão”? Galvão Bueno – Não é uma biografia, mas as memórias de 40 anos de uma vida dedicada ao trabalho, pelo qual sou apaixonado. Sou por natureza um vendedor e um contador de histórias. Já vendi livros, enciclopédias, embalagens plásticas e depois passei a vender emoções. Na verdade, aquilo (uma campanha no Twitter, # CALA BOCA GALVAO) surgiu meio do nada, na abertura da Copa de 2010, e tomou uma proporção espantosa. Fui dormir uma pessoa e acordei outra. Lembrando Paulinho da Viola, aquilo foi um tsunami que passou em minha vida. Decidimos encarar numa boa a história e o que poderia ser uma coisa complicada virou um grande barato. Surgiu o Fala, Galvão ! porque eu realmente vivo de falar.
ÉPOCA – Você disse após a Copa de 2010 que pensava em se aposentar depois do Mundial no Brasil. Mudou de ideia? Galvão – Talvez tenha me expressado mal ou as pessoas me entenderam mal. Quando estava terminando a transmissão da Copa da África do Sul, me dei conta de que aquela era minha décima Copa, todas fora do Brasil. Tinha 36 anos de Copas, e entendi que estava me despedindo das competições fora do Brasil, mas não queria dizer que estava me aposentando. Imaginava que, como narrador, 2014 seria a última, mas a Globo entende que devo continuar e tenho saúde para isso, me sinto bem viajando. Além do que, não quero que minha história em Copa termine com uma derrota de 10 a 1. Foi a 7 a 1 contra a Alemanha e 3 a 0 diante da Holanda.
ÉPOCA – O futebol brasileiro está sabendo se aproveitar da tragédia de 2014 para se reerguer? Galvão – Em termos de Seleção, dentro de campo, temos sim uma mudança. O futebol mostrado pela equipe do
Dunga está mais de acordo com o que é praticado no mundo pelos grandes times: mais coletivo, com mais pegada e velocidade e diminuindo os espaços. O que discuto é a forma como as escolhas são feitas e como se dirige o futebol brasileiro. Era o momento de uma discussão mais ampla, de criar um fórum. Não havia a necessidade de logo após a s pancada na Copa anunciar um novo técnico. A Alemanha fez um projeto de três Copas para chegar ao título. Podíamos ter ficado com o Alexandre Gallo até dezembro e aproveitado para discutir o futebol. Não discuto o nome do Dunga, e seu começo de trabalho é irrepreensível, mas discuto a filosofia da direção. A pessoa resolve do dia para a noite dar uma satisfação imediata e desnecessária. Mas a Seleção está dando certo. Vamos esperar pela Copa América e pelas Eliminatórias, que prometem ser de arrepiar, uma das mais difíceis da história.
ÉPOCA – No livro, você conta o episódio da Copa de 1994 em que vazou uma conversa sua com o diretor da transmissão a respeito do Pelé. O que houve de fato? Galvão – Existe sempre alguém com uma dose de maldade. Eu discutia com o diretor, que passou o jogo inteiro pedindo para que eu cortasse o microfone do Pelé . Peraí, gente. O trabalho dele era excelente, e o Pelé é o Pelé. Se ele tivesse se sentido ofendido, não teríamos nos abraçado após a final contra a Itália no famoso “é tetra, é tetra”. Quando sofri um acidente a cavalo e fui internado, uma das primeiras visitas que recebi no hospital foi a dele. Minha admiração pelo Pelé é gigantesca, e acho que é recíproca.
ÉPOCA – Você e Felipão já se falaram depois da Copa? Galvão – Ainda não, mas vai acontecer, e tenho certeza de que sem nenhum trauma. Se aquela derrota foi sofrida para todos nós, brasileiros, imagina para ele.
Felipão tinha muita confiança no trabalho feito na
Copa das Confederações , no ano anterior. Mas não deu certo. Foi muito difícil transmitir aquele jogo. Conto no livro que, num determinado momento do 7 a 1, desliguei o microfone para falar com o Ronaldo, que estava pálido. A
Seleção Brasileira pertence a todos nós, mas o
Ronaldo tem uma assinatura importante ali. Faz parte das minhas funções emitir minha opinião, e fiz isso no
Jornal Nacional daquele dia. Da mesma forma que em 1998, quando perdemos, fiz um editorial pedindo que a torcida brasileira recebesse bem a Seleção. E daquela vez ainda tivemos todo o drama do Ronaldo.
ÉPOCA – Você e Ronaldo, que são muito próximos, nunca conversaram sobre aquilo? Galvão – Nunca. É uma coisa que respeito. Agora, estivemos juntos no Stade de France, na vitória do Brasil sobre a França por 3 a 0, e falei para ele: “É duro para você entrar aqui, não é?”. Ele falou que era difícil, até porque não sabia o que havia acontecido. Não adianta querer esmiuçar certas coisas. Por mais instinto de jornalista que a gente tenha, certas coisas devem ser respeitadas.
"Quando perdemos o Ayrton, o foco foi para o Rubinho. O peso foi demais. É uma cobrança cruel"
ÉPOCA – São quase 30 páginas dedicadas exclusivamente ao Ayrton Senna. Algum dia pode surgir um novo Senna ou um fenômeno parecido? Galvão – É muito difícil aparecer um novo Pelé ou outro Ayrton Senna . Em qualquer segmento é difícil surgir alguém acima do excepcional. É até uma cobrança cruel e pouco produtiva, pois joga nas costas de alguém uma responsabilidade que a pessoa não vai ter condição de atingir. O primeiro que tomou esse raio violento foi o Rubinho (Barrichello) , que veio logo a seguir do Senna, e tem uma carreira belíssima. Quando perdemos o Ayrton, o foco todo foi para o Rubinho. Ele mesmo reconheceu que resolveu pegar a bandeira e o peso foi demais.
ÉPOCA – Você fala no livro abertamente de sua paixão pelo Flamengo. Não teme que isso possa gerar comentários sobre a imparcialidade nas narrações? Galvão – Hoje transmito Seleção Brasileira, Fórmula 1 e os clubes brasileiros na Copa Libertadores. Dificilmente faço uma partida de confronto entre os clubes daqui. No momento em que faço um livro que conta 41 anos de profissão de peito aberto, achei que era o momento de contar da minha ligação com o Maracanã, que vem dos anos 1950, quando meu tio rubro-negro me levava aos jogos do time. Não vejo mal que isso possa trazer.
ÉPOCA – Como aproveita a vida fora do trabalho? Galvão – Trabalho muito, mas faço questão de ser o Carlos Eduardo, apesar de ele ter sumido no tempo. (Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno é seu nome completo) . Minha primeira grande paixão é a família, e meu maior prazer é reunir todo mundo, geralmente na minha casa em Londrina ou na fazenda, no norte do Paraná. Fora a família, tenho paixão por campo. Crio cavalo e gado de raça. Minha outra paixão são os vinhos. Nestes mais de 40 anos viajando pelo mundo, fui aprendendo, conhecendo enólogos, até que decidi montar minha própria vinícola, a Bueno Wines, que fica perto de Bagé, no Rio Grande do Sul. Tenho cinco rótulos, e buscamos fazer vinho de excelência. Tenho também uma vinícola na Itália. Um dos rótulos fabricados lá ganhou um prêmio importante no ano passado.
ÉPOCA – Você tem status de celebridade, como as estrelas do futebol. De que forma encara isso? Galvão – Acho engraçada essa coisa de celebridade. Posso dizer que não trabalhei para isso. Dirigi meu trabalho para ser um bom profissional. Faço meu dever de casa e me preparo para cada evento que transmito. Vejo na TV o Campeonato Inglês, o Francês, o Espanhol, o Português, assisto a corridas de automóvel, basquete... Nunca tive o objetivo de ser celebridade. Agora, você entrar no estádio, num treino do Brasil, como aconteceu em muitos lugares, e ser aplaudido e ter o nome gritado é bacana para caramba.