quarta-feira, 1 de abril de 2015

A rota da propina

Robson Bonin  - Veja



Investigadores reconstituíram o trajeto percorrido pelo homem que distribuía dinheiro sujo aos políticos acusados de envolvimento no escândalo da Petrobras



Criada pelo doleiro Alberto Youssef para agradar aos "clientes especiais" da quadrilha que desviou bilhões da Petrobras na última década, a entrega de propina em domicílio, o já imortalizado "money delivery" do petrolão, foi, durante muito tempo, um instrumento de proteção aos corruptos. Alguns dos políticos e empresários mais influentes do país recebiam o dinheiro sujo incólumes em quartos de hotéis, apartamentos e escritórios de norte a sul do país e, em certos casos, até no exterior, sem deixar rastros. Braço-direito do doleiro, Rafael Ângulo Lopez era quem comandava esse serviço. Os corruptos adoravam a sua discrição. Costumavam recepcioná-lo com festa. Até que veio a Operação Lava-Jato e mudou tudo isso. Ângulo fechou com a Justiça um acordo de delação premiada para entregar às autoridades a lista completa dos políticos que receberam as suas entregas. Agora, depois de três meses de colaboração, os depoimentos acabaram de chegar à mesa do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), para ser homologados. O "homem das boas notícias", como era conhecido, tornou-se um pesadelo para os corruptos.

Em dezembro passado, VEJA revelou parte do conteúdo que o entregador acabara de contar à Justiça em troca da redução de pena. Versão perfeita do "homem da mala", Ângulo passou a última década cruzando o país com fortunas em cédulas escondidas sob as roupas. O ex-presidente e senador Fernando Collor, o tesoureiro nacional do PT, João Vaccari Neto, governadores (Roseana Sarney), ministros do governo Dilma Rousseff (Mário Negromonte) e deputados federais (Nelson Meurer, Luiz Argôlo e André Vargas) estavam na sua lista. Ângulo também cumpria missões para as empreiteiras do clube que saqueava os cofres da Petrobras. Os procuradores que interrogaram o entregador nas últimas semanas em São Paulo colheram farto material probatório para levar ao cadafalso alguns desses figurões da República. O entregador confirmou o nome dos corruptos que usavam os seus serviços. Relacionou datas, endereços e valores das entregas. Mas foi além. Valendo-se de sua memória fotográfica, reconstituiu cenas e apontou detalhes da intimidade dos poderosos que são considerados preciosos pelos procuradores para provar a etapa final do esquema de corrupção: quando o dinheiro vivo chegou ao bolso de parlamentares, ministros, empresários...

Para descrever as revelações mais importantes do entregador e não deixar nenhuma dúvida sobre o destino das malas de dinheiro, os procuradores reconstituíram detalhadamente alguns dos trajetos. Ângulo narrou aos investigadores que, por determinação de Alberto Youssef, em 2012, acompanhou o executivo José Alberto Piva Campana, da Toshiba Infraestrutura, uma das prestadoras de serviço à Petrobras, em duas entregas de dinheiro ilegal na sede do PT em São Paulo. Nas duas ocasiões — a primeira vez com 200 000 reais e a segunda com 350 000 reais —, o dinheiro, acomodado em malas de viagem, deixou o escritório do doleiro em um Porsche Cayenne blindado. Ângulo dirigiu o carro da sede do escritório do doleiro até a sede do PT. Ele parou o veículo preto na porta do prédio e coube ao executivo fazer a entrega das malas abarrotadas de propina. Para conferirem credibilidade ao relato, os procuradores imprimiram um mapa da região e pediram a Ângulo que mostrasse cada esquina percorrida no dia das entregas. Além de apontar a sede do PT, o entregador descreveu a conversa travada no caminho com o executivo da Toshiba e até a situação climática no dia de cada entrega. A polícia já descobriu que, nesse mesmo ano, a Toshiba recorreu à engrenagem criminosa de Alberto Youssef para pagar 1,5 milhão de reais em propinas. Os pagamentos, segundo o doleiro, foram feitos ao tesoureiro nacional do PT, João Vaccari Neto.

Depois da entrega no PT, Rafael Ângulo falou das ligações do doleiro com a Odebrecht, investigada por suspeita de usar contas no exterior para pagar propina aos corruptos do petrolão. A mando de Youssef, Ângulo contou que manteve, entre 2008 e 2012, dezenas de encontros com Alexandrino Alencar, um dos diretores da empreiteira. Registrados por Ângulo em uma planilha de computador, os contatos aconteceram na sede do grupo Odebrecht em São Paulo. Ângulo subia ao 322 piso do edifício e encontrava o diretor na sala de número 25. As conversas eram rápidas. O entregador fornecia a Alexandrino os números de contas bancárias no exterior que deveriam ser usadas para depósitos e também era chamado por ele para buscar comprovantes de depósitos já realizados em contas internacionais. Para que não restasse dúvida de que se tratava mesmo do diretor, os investigadores apresentaram a Ângulo uma fotografia de Alexandrino. Além de fazer o reconhecimento visual, o entregador apontou no seu arquivo um número de celular. Era o contato pessoal de Alexandrino, cujo perfil num aplicativo de conversas mostrava uma foto do diretor na intimidade, usando bermuda xadrez e camiseta branca. Era a partir desse número que os encontros eram marcados.

O grosso do serviço, confirmou o delator, era mesmo entrega de dinheiro. Ciente da influência e do prestígio dos destinatários de suas "encomendas", Ângulo registrou em planilhas as entregas que realizou a políticos. Os arquivos identificam os pagamentos por data, apelido do beneficiário, motivo do pagamento e um curioso indexador: para facilitar a identificação dos políticos no meio de tantos pagamentos feitos a comparsas de Youssef, Ângulo acrescentava a palavra "band" — uma referência a "bandido" — ao lado do nome do político. Além desse registro, o braço-direito do doleiro escaneou todos canhotos das passagens aéreas ele nas entregas. Assim, ele provou aos procuradores que estava, de fato, no local determinado no dia anotado na planilha de pagamentos. A riqueza de detalhes do arquivo impressionou os investigadores. Ângulo guardava até as notas fiscais de mensalidades de academia que pagou com dinheiro da Petrobras para um dos parlamentares do esquema.

Foi recorrendo à planilha que os procuradores pediram a ele que identificasse os pagamentos anotados em nome de Fernando Collor. No arquivo do entregador, o ex-presidente está identificado pelas iniciais "FC". Em março do ano passado, a polícia apreendeu no escritório de Youssef comprovantes de depósitos bancários nas contas pessoais de Collor. O ex-presidente, cassado em 1992 por corrupção, nunca explicou suas relações financeiras com o grupo criminoso. Ângulo contou aos procuradores que, certo dia, foi chamado à sala de Youssef e recebeu um maço de notas que deveria ser entregue a alguém importante que aguardava num luxuoso apartamento em São Paulo. Depois de passar pelos seguranças do prédio, Ângulo foi recebido na porta do apartamento de mais de 600 metros quadrados por uma empregada que o levou até o cliente mais que ilustre. O entregador reproduziu o curto diálogo que manteve com o dono da casa. "Encomenda do Alberto Youssef para o senhor", disse Ângulo. Fernando Collor fingiu espanto: "Que encomenda?". Ângulo arrematou, deixando o pacote sobre a mesa: "O senhor sabe o que é isso!" Collor não respondeu. A polícia tem informações de que o ex-presidente embolsou, ao todo, 3 milhões de reais em propinas.