sexta-feira, 24 de outubro de 2025

'Fiat Fux', por Alexandre Garcia

"O tempo, esse árbitro silencioso e implacável, tem o dom de dissipar as brumas da paixão, revelar os contornos mais íntimos da verdade e expor os pontos que, conquanto movidos pelas melhores intenções, redundaram em injustiça." 


Ministro Luiz Fux no Julgamento da Ação Penal 2694 - Núcleo 4 (21/10/2025) | Foto: Gustavo Moreno/STF


N o princípio, eram as trevas na Primeira Turma do Supremo, até que Fux ordenou: Fiat lux! E a luz foi feita nos seus votos. O primeiro, mostrando que para condenar são necessários fatos, provas e não narrativas e suposições; no segundo, veio a luz da sabedoria, pesando na balança da Justiça e encontrando a virtude da humildade para confessar o erro, arrepender-se e decidir não persistir no equívoco, não errar mais, em nome da Justiça e do Estado de Direito. Para seus pares, aconselhou: “Não há demérito maior que o juiz pactuar com seu próprio equívoco”. Era como se um juiz romano pontificasse: Errare, humanum est; perseverare in errore, diabolicum. Errar é humano, mas insistir no erro é diabólico. 

Já no voto de 10 de setembro, em que absolveu Bolsonaro e outros, Fux deu uma aula magna de Direito. Escancarou os desvios do devido processo legal; mostrou que não havia provas, apenas criações; que o processo deveria estar na primeira instância, que não há crime em cogitações de crime; lembrou que é preciso individualizar cada acusação, ao contrário do genérico adotado pelo relator. Aliás, demoliu todos os argumentos do relator Morais. Mesmo assim, os demais da Primeira Turma ficaram anestesiados à lógica e à aula de Estado de Direito. O resultado foi 4 a 1. O certo ficou só. 




Talvez o voto de Fux em setembro o tenha obrigado a reexaminar toda a questão do 8 de janeiro e ele acabou fazendo um exame de consciência nos votos que emitira pelas condenações dos que já haviam sido julgados. Então veio a sua catarse no voto desta semana, julgando os do “núcleo da desinformação”. Foi um voto dirigido a seus pares da turma, exortando-os a voltar às quatro linhas da Constituição. Mas primeiro fez confissão de seus pecados, de ter cometido injustiças ao condenar outros do 8 de janeiro. “O tempo e a consciência não permitem sustentar os mesmos votos, após examinar os fatos com serenidade, à luz das garantias constitucionais”. Um juiz precisa de serenidade; não de pressa, muito menos da raiva da vingança. Deve ter lembrado de outro truísmo do Direito Romano, Gratia et Iustitia, quando ponderou que “o sofrimento dos que esperam justiça não pode ser em vão”.




Foi a forma cavalheiresca que ele encontrou para exortar seus colegas a imitarem-no em arrependimento e correção de rumo, ainda que o espírito de corpo tenha a tendência natural de salvar aparências, uma imagem do Supremo que o próprio Fux já havia diagnosticado, ao assumir a presidência da corte em 10 de setembro de 2020, de que estava se deteriorando na medida em que dava resposta a tudo, se metendo em assuntos da esfera político-legislativa e, na ocasião, pediu que seus pares tivessem a virtude passiva. O que se viu foi o ativismo judicial abertamente defendido por Barroso, que chegou ao ápice com a declaração pública de que “nós derrotamos o bolsonarismo”. Agora seus sucessores estão concluindo a obra ao condenarem o bolsonarismo. No voto-exortação, Fux sentenciou: “Há mais coragem em ser justo parecendo ser injusto do que ser justo para salvaguardar as aparências da Justiça.”




No mesmo voto, Fux ponderou que, num momento de comoção nacional, a Justiça procurou oferecer uma resposta rápida para impedir a instabilidade político-social. “Precipitação travestida de prudência”, como percebe Fux agora. Mas a lógica da urgência incorreu em injustiça — argumentou ele. “O meu realinhamento não significa fragilidade, mas firmeza na defesa do Estado de Direito.” É disso que fala eloquentemente a tarifa de 40% sobre exportações brasileiras para os Estados Unidos. O distanciamento do Estado de Direito — como deve ter dito Marco Rubio para Mauro Vieira no encontro a sós na Casa Branca. Fux insistiu com seus exemplos para a Primeira Turma: “Com o passar do tempo, amadurece o senso de humanidade — e coragem para reexaminar nossos próprios vereditos.” Coragem e humildade que ainda não chegaram à turma, que mais uma vez deixou Fux como único voto certo.


“Precipitação travestida de prudência”, como percebe Fux agora. Mas a lógica da urgência incorreu em injustiça — argumentou ele. “O meu realinhamento não significa fragilidade, mas firmeza na defesa do Estado de Direito.”


Dito isso, ele pediu, e o presidente Fachin concordou, para mudar para a Segunda Turma, onde ficou aberta a vaga de Barroso. Uma simples mudança estratégica que provoca grandes mudanças. Antes, havia maioria de um mesmo lado em ambas as turmas. Agora, inverte a maioria na Segunda Turma. De um lado, Fux, Nunes Marques e André Mendonça; de outro, Gilmar e Toffoli. Três a dois, agora com sinal invertido. Fux, sorteado relator do recurso contra o TSE sobre inelegibilidade de Bolsonaro, pode julgar o recurso na sua nova turma. E ainda existe o Senado, por onde o indicado por Lula deve passar por sabatina, para saber se preenche a principal exigência constitucional de “notável saber jurídico”. Notável, como lembra Ives Gandra, é muito acima da média; é expoente, modelo e fonte em saber jurídico.


Ministro Luiz Fux no Julgamento da Ação Penal 2.694 – Núcleo 4 (21/10/2025) | Foto: Luiz Silveira/STF 

“Mas o tempo, esse árbitro silencioso e implacável, tem o dom de dissipar as brumas da paixão, revelar os contornos mais íntimos da verdade e expor os pontos que, conquanto movidos pelas melhores intenções, redundaram em injustiça”, disse Fux, na sua cadeira de confessionário e púlpito de pregação. Parece uma manifestação extraordinária, mas deveria ser lugar-comum, rotina. Parece algo extraordinário porque afundamos no atoleiro dos desvios. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Fiat Fux! Faça-se a luz para os cegos verem.

 

Alexandre Garcia - Revista Oeste