terça-feira, 16 de dezembro de 2025
Turismo sem Fronteiras: o fracasso do programa de internacionalização acadêmica

O Ciência sem Fronteiras (CsF) foi apresentado como uma iniciativa grandiosa. Criado em 2011 pelos Ministérios da Educação (MEC) e da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), por meio da Capes e do CNPq, o programa tinha como objetivo promover a expansão, a internacionalização e a competitividade da ciência e tecnologia brasileiras. Em sua versão oficial, o programa foi apresentado como um marco capaz de redefinir o rumo da pesquisa nacional.
A meta era ambiciosa. Em quatro anos, seriam concedidas até 101 mil bolsas para enviar estudantes de graduação e pós-graduação ao exterior, colocando-os em contato com instituições consideradas tecnologicamente avançadas. Além disso, o plano incluía atrair pesquisadores estrangeiros, estimular parcerias internacionais e oferecer treinamento especializado para profissionais do setor produtivo em áreas classificadas como estratégicas.
O governo alimentava a expectativa de que milhares de estudantes voltariam do exterior altamente qualificados, trazendo conhecimento, inovação e soluções suficientes para colocar o Brasil no patamar das nações mais desenvolvidas.
Era a velha ilusão tecnocrática: imaginar que despejar bilhões em bolsas geraria, por si só, progresso científico e inovação.
Mas a realidade logo se impôs. Em 2015, o programa foi congelado. Em 2017, oficialmente encerrado. O Ministério da Educação alegou que o custo se tornou insustentável e que o retorno era muito inferior ao esperado. A justificativa representou uma confissão discreta de que a engenharia social entregou bem menos do que prometera e que a propaganda havia sido muito mais robusta do que os resultados concretos.
Agora, com a distância de alguns anos, surge a pergunta inevitável: como avaliar o Ciência sem Fronteiras à luz do que realmente produziu? Separar o brilho do marketing da substância dos resultados é essencial para entender o programa como ele foi de fato e não como foi anunciado. É a partir desse ponto que uma análise honesta se torna possível.
O otimismo artificial acabou influenciando até parte da produção acadêmica sobre o tema. Em grupos de pesquisa, relatos apontam um viés claro em querer enxergar bons resultados a qualquer custo. Não é coincidência que poucos trabalhos se dedicaram a avaliar o programa de forma rigorosa.
Os críticos do Ciência sem Fronteiras logo apontaram um problema estrutural. Embora o programa tenha sido vendido como relevante, sua eficácia foi baixa. Não cumpriu as metas previstas em várias modalidades de bolsas, apresentou forte concentração regional e revelou uma eficiência duvidosa diante dos custos bilionários envolvidos. Em termos econômicos, era o clássico exemplo de uma política pública que consome muito e entrega pouco.
Outros observadores lembram que o programa nasceu às pressas. Poucos meses separaram o anúncio na imprensa da implementação nas universidades. O governo federal tratou a iniciativa como se estivesse montando um espetáculo, não uma política séria. Apesar de ser apresentado como o maior programa de mobilidade estudantil da história do país, nem a CAPES, nem o CNPq, nem as instituições de ensino superior participaram das etapas essenciais do processo: diagnóstico do problema, formulação das diretrizes e tomada de decisão. Foram chamados apenas para executar as diretrizes oficiais.
Os números do programa ajudam a ilustrar a dimensão do problema. O Ciência sem Fronteiras foi anunciado com um gasto previsto de 3 bilhões de reais. O gasto real ultrapassou 13,2 bilhões em 2017 e alcançou quase 20 bilhões com o pagamento das bolsas remanescentes, quase sete vezes o valor anunciado.
Até janeiro de 2016, haviam sido implementadas 92.880 bolsas. Desse total, 79% eram de graduação sanduíche, a modalidade menos relacionada à pesquisa científica e que, paradoxalmente, consumiu a maior parte dos recursos. Enquanto isso, as modalidades realmente voltadas à cooperação científica e à atração de pesquisadores estrangeiros atingiram apenas 25% e 39% de suas metas. O programa dizia querer ciência, mas financiava estadias de graduação.
O custo por aluno variou entre 45 mil e 321 mil reais, dependendo da modalidade. E mais da metade do dinheiro foi parar diretamente em universidades estrangeiras, sem que houvesse qualquer negociação de valores. As instituições estrangeiras, muitas delas medianas, rapidamente perceberam a oportunidade de inflar preços sem restrição alguma.
O problema vai além do valor absoluto. O programa consumiu, sozinho, 15 vezes o orçamento empenhado do CNPq em 2016, e o equivalente a 50% do orçamento da CAPES em 2015. O Tribunal de Contas da União apontou ainda um fator gravíssimo: grande parte das bolsas foi financiada com recursos do FNDCT, um fundo que deveria ser destinado a pesquisa e desenvolvimento, não a formação de estudantes de graduação no exterior. Em 2014, mais de um terço dos recursos do fundo foi desviado para o programa. Em 2015, o percentual subiu para 40%.
A literatura especializada já destacou uma lista longa de falhas. O planejamento era frágil. As informações sobre o programa eram confusas. Não houve alinhamento prévio com as universidades. Os estudantes receberam pouco ou nenhum suporte. O domínio de idiomas estrangeiros era insuficiente. O aproveitamento acadêmico no exterior, baixo. Muitos não conseguiram entrar nas universidades de ponta, enquanto o Brasil não conseguia atrair pesquisadores estrangeiros, porque o país simplesmente não oferecia condições mínimas de interesse. O programa era passivo, unilateral, pensado apenas para enviar alunos, não para receber. Era mobilidade acadêmica de mão única.
O desenho da política também se mostrou inconsistente com os próprios objetivos anunciados. O decreto falava em aumentar a visibilidade da pesquisa brasileira, ampliar a cooperação científica e atrair pesquisadores. Entretanto, o programa não criou mecanismos para alcançar essas metas.
E o motivo é simples: quase 80% de todas as bolsas foram destinadas à graduação sanduíche, uma modalidade que não exigia produção científica nem no Brasil, nem no exterior. Em outras palavras, o governo dizia que queria ciência, mas acabou financiando o turismo acadêmico.
Não é surpresa que o programa tenha produzido tão pouco. Como Murray Rothbard explicou, quando o estado assume o papel de planejador sem compreender incentivos, ele cria políticas desconectadas da realidade. Desenha metas impossíveis, distribui recursos de forma irracional e depois se espanta com o fracasso. O Ciência sem Fronteiras seguiu esse roteiro com precisão.
Se os documentos oficiais já revelam a fragilidade do Ciência sem Fronteiras, os relatos de professores e coordenadores de curso deixam o cenário ainda mais explícito. Muitos descrevem o programa como uma coleção de improvisos, desperdícios e decisões tomadas às pressas.
Um docente de uma universidade de São Paulo chamou a atenção para algo insólito: o programa pretendia enviar estudantes para universidades de ponta, mas um de seus principais destinos acabou sendo Portugal. Escolhido não pela excelência acadêmica, mas pela facilidade linguística. A prioridade não era garantir que o estudante tivesse condições reais de acompanhar o conteúdo. A prioridade era preencher vagas e inflar estatísticas.
Relatos de coordenadores de cursos universitários reforçam o grau de improvisação que marcou o programa. Diversos alunos que acumulavam reprovações, inclusive em disciplinas básicas, foram aprovados no Ciência sem Fronteiras. Professores relatam que grande parte dos estudantes vinha de universidades fracas no Brasil e era enviada para instituições igualmente fracas no exterior.
Com critérios frágeis e pressa política para inflar números, o programa se transformou em um atalho para estudantes pouco preparados, que eram enviados ao exterior sem domínio do idioma, sem maturidade acadêmica e sem condições reais de aproveitar a experiência. A consequência era previsível: desempenho baixo, oportunidades desperdiçadas e mais dinheiro público jogado fora.
Muitos estudantes não dominavam inglês, mas, ainda assim, foram enviados para países de língua inglesa. Para tentar contornar o problema, universidades brasileiras tiveram de oferecer cursos emergenciais de inglês, muitas vezes em poucos meses, sem qualquer chance de preparar adequadamente os alunos.
Professores que acompanharam o programa de perto relatam episódios que parecem anedotas. Um deles lembra que, em determinada universidade europeia, o “maior sucesso” do Ciência sem Fronteiras não foi um projeto de pesquisa, foi um grupo de pagode formado por bolsistas brasileiros.
Outro docente, que lidava com a Durham University, conta que o teste de proficiência em inglês foi rebaixado a pedido do Brasil até atingir um nível tão baixo que, segundo ele, “até um chimpanzé seria aprovado”.
Uma professora relatou alunos que não cursaram uma única disciplina, mas usaram o ano de bolsa para viajar pela Europa. Há ainda quem fale em verdadeira “lavagem acadêmica”: bolsas sem rastreabilidade, matrículas apenas formais e presença inexistente nas aulas.
É por isso que muitos docentes passaram a chamar o Ciência sem Fronteiras de “Turismo Sem Fronteiras.” E não sem razão.
Um professor lembra com ironia de quando suas turmas de Resistência dos Materiais ficaram reduzidas a apenas três alunos. Até uma estudante que havia abandonado o curso decidiu voltar quando soube da “mamata”. Resultado: passou um ano e meio na Europa. Ela e vários colegas passaram praticamente todo o período tentando aprender inglês, sem conseguir aprovação nos testes. Não cursaram disciplina alguma. Transformaram o intercâmbio científico em um longo passeio.
Outra professora relata,
Eu me lembro que, na época, circulou um estudo mostrando que a China levou vinte anos para enviar trinta mil estudantes ao exterior. Foram duas décadas de preparo rigoroso, seleção criteriosa e objetivos claros. No Brasil, fizemos o oposto: transformamos o processo em uma farra. Quem quis, foi. Não houve filtro, nem estratégia, nem responsabilidade. O resultado é simples e doloroso: zero de retorno real para o país. Apenas mais uma aventura custosa bancada pelo contribuinte. A universidade em que estudei, a Texas A&M, não aceitou um único brasileiro pelo programa.
Um professor português que hoje leciona no Brasil contou uma cena reveladora. Em 2012, antes mesmo de assumir seu cargo na universidade, viu afixado na parede, em frente à sala do Pró-Reitor de Ensino, um cartaz enorme anunciando: “Agora já podes viajar!”. Era publicidade do Ciência sem Fronteiras. E os alunos, de fato, viajaram. Naquele dia, afirmou ele, teve a exata medida do que é o Ensino Superior brasileiro.
Ele continua,
A Universidade Lusíada de Lisboa l, onde fui professor até 2010, tinha uma graduação e uma pós muito conceituada. A China financiou cerca de vinte estudantes para cursarem a graduação completa ali. Mas não fez isso às pressas. Antes de chegarem a Portugal, esses jovens haviam passado meses aprendendo a falar, ler e escrever português corretamente. Eram enviados já prontos, disciplinados e conscientes da oportunidade que tinham nas mãos.
Outro professor descreve uma regra informal que observou ainda nos anos 1990, quando convivia com estudantes chineses: a “regra da sexta-feira”. Na biblioteca, os americanos nem apareciam. Os europeus iam embora após o almoço. Ele próprio permanecia até as cinco da tarde, junto de alguns indianos. Já os chineses ficavam. Viravam a noite estudando. A cena, repetida semana após semana, revelava a hierarquia de valores de cada cultura. “Educação é a mais alta prioridade na Ásia”, comenta.
Os relatos continuam. Um professor que orientou 21 doutorandos chineses afirma que 12 deles hoje são professores na China. “São os melhores aprendizes que um professor poderia querer”, diz. E completa: “É por isso que eles produzem o que o mundo inteiro consome em eletrônicos.” Outro docente que acompanhou um aluno chinês no curso de Engenharia Metalúrgica e de Materiais descreve sua postura: educado, humilde, pontual, dedicado, cumpridor das tarefas. No dia da defesa, toda a família estava presente. Ao final, os pais se curvaram diante do professor em sinal de respeito. Ele conclui: “São momentos assim que compõem a vida de um professor.”
Há quem destaque que, apesar do regime político chinês, o país carrega um legado cultural profundo — Confúcio, disciplina, tradição de estudos, academias antigas. Não é por acaso que alcançam excelência em tantas áreas.
E então vem a comparação amarga. Enquanto países asiáticos tratam educação como prioridade máxima, o Brasil parece preso à retórica vazia de sempre: “inclusão”, “combate ao fascismo”, “resistência”, “luta por narrativas”. Expressões repetidas como mantras ideológicos, incapazes de produzir qualquer avanço real.
Como sintetizou um professor, com a acidez típica de quem conhece os bastidores: “Enquanto eles formam os melhores estudantes do mundo, nós ‘incluímos’ nossos jovens numa poça gigante de merda.”
Enquanto isso, a classe acadêmica, na sua maioria, preferiu aplaudir em silêncio. Para muitos, criticar o programa significava enfrentar tabu ideológico. Como observou um professor: “politicamente, o PT faturou; academicamente, quase ninguém quis questionar.” A mistura de conveniência política e covardia intelectual ajudou a manter o programa intocado por muito tempo.
Os países que levam ciência a sério enviam seus melhores alunos para experiências integrais, exigem contrapartidas e estruturam políticas duradouras. Como vimos, a China manda seus estudantes cursarem graduações inteiras nos EUA e na Europa, frequentemente com a estratégia explícita de absorver conhecimento tecnológico e aplicá-lo industrialmente.
O Brasil, ao contrário, preferiu apostar em soluções improvisadas, pressa administrativa e critérios frouxos. Tudo financiado por um fundo que deveria fazer exatamente o oposto: promover pesquisa real.
Ao final, o que resta é o retrato fiel de um programa concebido para parecer grandioso, mas executado para gerar estatísticas infladas. Foi, como descreveu um dos professores: “uma política ruidosa, cara, mal planejada e desenhada para ganhar manchetes, não para produzir ciência”.
Em meio a esse cenário, surge a constatação incômoda, mas inevitável: o estado brasileiro não possui uma política séria de ciência e tecnologia. Tem apenas impulsos, modismos e projetos caros que começam com propaganda e terminam com frustração.
Os intelectuais sérios entendem que o país precisa de uma proposta baseada em mérito, responsabilidade, liberdade de pesquisa, competição institucional e incentivos corretos — não em programas de curto prazo moldados para capital político.
Isaias Lobão -Mises Brasil
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Keynes e suas simpatias pelos “experimentos” do nazismo e do fascismo

Este é o segundo artigo de uma série de publicações que reproduzem o artigo de Ralph Raico “Was Keynes a Liberal?“, publicado na edição de outono de 2008 da The Independent Review. Leia aqui o primeiro artigo da série. Todas as referências bibliográficas estão contidas ao final do primeiro artigo.
Outras razões para se pôr em dúvida o liberalismo de Keynes se devem à sua atitude, nas décadas de 1920 e 1930, com relação aos “experimentos” ocorridos no continente europeu no campo da economia planejada. Sobre as políticas econômicas do nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano, Keynes por diversas vezes manifestou um ponto de vista surpreendente para alguém considerado um modelo de pensador liberal. Nesse particular, estão em questão dois textos: o prefácio à edição alemã de A Teoria Geral (Keynes 1973b, pp. xxv–xxvii) e o ensaio “National self-sufficiency” (Keynes 1933; também incluído em Keynes 1982a, pp. 233–46).
No prefácio, Keynes afirma que está se desviando da “tradição inglesa clássica (ou ortodoxa)”, a qual — como observa — jamais prevaleceu por completo no pensamento alemão. “Tanto a Escola de Manchester quanto o marxismo derivam em última instância de Ricardo. … Mas na Alemanha sempre houve amplos setores da opinião que não aderiram nem a um, nem a outro. … Talvez, portanto, eu possa contar com uma menor resistência da parte dos leitores alemães do que da parte dos ingleses ao oferecer uma teoria do emprego e da produção como um todo, a qual apresenta divergências da tradição ortodoxa em pontos importantes” (1973b, pp. xxv–xxvi).
Para seduzir ainda mais os leitores da Alemanha nacional-socialista, Keynes acrescenta: “Os exemplos e as explicações de boa parte do livro a seguir remetem principalmente às condições vigentes nos países anglo-saxões. Não obstante, a teoria da produção como um todo, que é o que este livro tenciona oferecer, se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário, e não às condições de livre concorrência e uma grande medida de laissez-faire.” (1973b, p. xxvi).
Roy Harrod não menciona o prefácio em sua antiga biografia de Keynes (1951).[1] Robert Skidelsky alude a sua “redação infeliz”, e deixa por isso mesmo (1992, p. 581). Alan Peacock escreve a respeito da passagem (sem reproduzi-la) na qual Keynes menciona “que o governo alemão (nazista) à época seria mais simpático às suas ideias sobre o efeito das obras públicas na criação de empregos do que o governo britânico” (1993, p. 7). A interpretação, contudo, vai de encontro ao sentido evidente do texto: não é que os líderes nazistas fossem, por acaso, mais simpáticos a uma das propostas de Keynes em especial, mas sim que, na opinião de Keynes, sua teoria “se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário”. Peacock ainda diz que “há controvérsias quanto ao prefácio ter sido traduzido corretamente ou não”. Mas essa controvérsia em nada influi no trecho aqui reproduzido, já que ele foi extraído do manuscrito inglês de Keynes.[2]
Com frequência, economistas da Alemanha nazista faziam referências a Keynes com o intuito de defender as políticas econômicas ostensivamente antiliberais do nacional-socialismo. Otto Wagener, que tinha chefiado um departamento nazista de pesquisas econômicas antes da tomada do poder, deu a Hitler uma cópia do livro de Keynes sobre dinheiro por considerá-lo “um tratado bem interessante”, o qual transmitia a sensação de que o autor estava “bem adiantado e vindo em nossa direção mesmo sem estar familiarizado conosco, nem com nosso ponto de vista” (citado em Barkai 1977, pp. 55, 57, 156).
O lançamento da edição alemã de A Teoria Geral foi recebido com críticas veiculadas em publicações que tinham conseguido guardar alguma distância das políticas econômicas nazistas oficiais, ao passo que um apologista nazista na cidade de Heidelberg saudou-o “como a justificação do nacional-socialismo”. O próprio Keynes comentou que as autoridades alemãs haviam permitido a publicação “em um papel [que era] um tanto melhor que o de costume, a um preço não muito acima que o de costume” (ambas as citações em Skidelsky 1992, pp. 581, 583).
Um exemplo ainda mais relevante das dificuldades de classificar Keynes como um liberal é seu ensaio “National self-sufficiency” (Keynes 1933, 1982b, pp. 233–46).[3] Nele, o laissez-faire e o livre mercado são tratados com o desdém característico do Círculo de Bloomsbury. No passado, haviam sido vistos “quase que como uma parte das leis morais”, compondo o “fardo de enfeites obsoletos que o espírito carrega para lá e para cá” (Keynes 1933, p. 755). Bem diferente, no entanto, é a posição de Keynes com relação a doutrinas extremamente populares à época em que escreveu. “A cada ano fica mais evidente que o mundo está embarcando em uma série de experiências político-econômicas” à medida que os pressupostos do livre mercado do século XIX são postos de lado. E quais são essas “experiências”? Aquelas em curso na Rússia, Itália, Irlanda (sic) e Alemanha. Até a Grã-Bretanha e os Estados Unidos têm se empenhado em adotar “um novo plano” (p. 761).
Keynes é estranhamente agnóstico com relação às chances de sucesso desses vários projetos: “Não sabemos quais serão os resultados. Imagino que todos nós estejamos prestes a cometer muitos erros. Ninguém é capaz de dizer qual dos novos sistemas comprovará ser o melhor. … Cada um de nós tem sua preferência. Não acreditando que já estejamos salvos [sic], cada um de nós gostaria de ter uma chance de encontrar um caminho para a própria salvação” (pp. 761–62).
Ele admite que “no que diz respeito aos pormenores econômicos, em contraste aos controles centrais”, prefere “manter privado o máximo possível de decisão, iniciativa e empreendimento” (p. 762). Contudo, “na medida do possível, não podemos estar sujeitos à influência das mudanças econômicas ocorridas em outros lugares, para podermos proceder às experiências de nossa preferência com vistas ao ideal de república social do futuro” (p. 763).
À época em que Keynes escreveu esse artigo, era costume associar a doutrina da “auto-suficiência nacional”, que ele pregava, ao nacional-socialismo e ao fascismo. Quando Franklin Roosevelt atacou a conferência econômica de Londres, em junho de 1933, o presidente do Reichsbank, Hjalmar Schacht, declarou ao Völkischer Beobachter (jornal oficial do Partido Nazista), em tom presunçoso, que o líder norte-americano tinha adotado a filosofia econômica de Hitler e de Mussolini: “Tomando nas próprias mãos as rédeas de seu destino econômico, você ajuda não apenas a si mesmo, mas ao mundo inteiro” (Garraty 1973, p. 922).
Keynes admite que muitos desacertos estão sendo cometidos em todas as tentativas de planejamento ao redor do mundo. Embora Mussolini possa estar “adquirindo prudência e bom senso”, “a Alemanha anda à mercê de irresponsabilidades desenfreadas — embora seja cedo demais para julgá-la.”[4] Ele reserva suas críticas mais severas à Rússia de Stalin, exemplo histórico talvez sem precedentes de “incompetência administrativa e do sacrifício de quase tudo que faz a vida valer a pena em nome de cabeças-duras” (p. 766). “Que Stalin sirva como um exemplo pavoroso para todos que tentarem realizar experiências”, declara Keynes (p. 769).
Contudo, sua crítica a Stalin — que até então já havia condenado à inanição milhões de pessoas na Ucrânia, e que enchia de outros milhões os gulags de Lênin — é curiosamente oblíqua e excêntrica. O que a experiência socioeconômica soviética, juntamente com as demais, necessita acima de tudo é de uma “crítica audaciosa, livre e desapiedada”. Mas
Stalin eliminou todas as mentes criticas e independentes, mesmo aquelas que, em geral, lhes eram simpáticas. Ele produziu um ambiente no qual os processos mentais são atrofiados. Os suaves espasmos do cérebro ficam enrijecidas. A vociferação multiplicada dos alto-falantes substitui as delicadas inflexões da voz humana. Os berros da propaganda aborrecem até os pássaros e animais do campo, induzindo ao estupor. (p. 769)
“Cabeças-duras… cérebros enrijecidos… aborrecimento… estupor”. O leitor pode julgar por si mesmo se essa crítica — parecida com a insistência com que John Stuart Mill repisava a suma importância das discussões e debates intermináveis — é apropriada aos malfeitos praticados por Stalin e pelo poderio soviético a partir de 1933.
Por fim, uma passagem do ensaio, como consta da primeira versão, no Yale Review, é omitida em The collected writings:[5] “Mas exerço minhas críticas como alguém de coração amistoso e simpático às experiências desesperadas do mundo contemporâneo, alguém que lhes quer bem e que deseja seu sucesso, alguém que tem em vista suas próprias experiências e para quem, em última instância, não há no mundo o que não seja preferível àquilo que os relatórios financeiros costumam chamar de ‘a melhor opinião de Wall Street'” (Keynes 1933, p. 766).
O comentário de Skidelsky a respeito do ensaio é lacônico e irrelevante: “Como observou Keynes, nos artigos ‘National self-sufficiency’ [o ensaio foi publicado em duas partes na revista The New Statesman and Nation], as experiências sociais estavam na moda; independentemente da procedência política, todas tinham em vista um papel bastante dilatado para o governo e um papel extremamente restrito para o livre comércio” (1992, p. 483). Nem de longe essa descrição parece suficiente.
Durante as décadas de 1920 e 1930, a insistência de Keynes nas maravilhas dos “experimentos” da engenharia social acabou se tornando quase risível. Outro exemplo consta do ensaio “The end of laissez-faire” no qual ele escreve: “Eu critico o socialismo de estado doutrinário não porque ele procure mobilizar os impulsos altruístas dos homens em prol da sociedade, nem porque se afaste do laissez-faire, nem porque exclua a liberdade natural do homem de se tornar milionário, nem porque tenha a coragem de promover experiências audaciosas. Todas essas coisas eu aplaudo” (1972, 290, grifo meu).
A esta altura, a pergunta que fica é: como pode alguém que expressou uma ávida simpatia pelos “experimentos” de nazistas, fascistas e comunistas stalinistas, e que reservava zombarias triviais ao livre funcionamento da sociedade do laissez-faire, ser considerado um exemplo acabado de liberal, se é que se pode chamá-lo de liberal?[6]
No próximo artigo, as ligações de Keynes com proeminentes comunistas.
[1] Em extensa nota de rodapé, Michael Heilperin comenta a ausência de referências a esse prefácio na obra de Roy Harrod (1951), maior biógrafo de Keynes à época em que Heilperin escreveu. Em vista da repressão à liberdade acadêmica e a outras liberdades, na Alemanha nazista, Heilperin chama o lisonjeiro texto de Keynes de “mancha indelével em seu histórico de liberal” (1960, 127 n. 48).
[2] A discussão envolve algumas frases que constam da edição alemã, mas não do manuscrito de Keynes; contudo, não parece que essas frases incriminem ainda mais o autor, a não ser pelo uso da expressão “eminente liderança nacional [Führung]”, com conotação positiva. Seja como for, é provável que Keynes aprovasse os acréscimos. Ver Schefold 1980.
[3] A versão constante em The collected writings é das edições de 8 e 15 de julho de 1933 da revista The New Statesman and Nation. Contudo, primeiro o ensaio foi publicado na revista Yale Review. As citações que fazemos aqui são desta segunda versão, Keynes 1933. Heilperin afirma que, “em vista de sua brevidade, [esse ensaio] pode ser considerado um dos textos mais significativos de Keynes” e comenta que o autor minimiza o caráter totalitário dos regimes em discussão: “Estavam fazendo uma experiência — e é isso que torna maravilhosas as coisas!” (1960, 111). Aqui, Heilperin consegue captar o espírito fundamental desse trabalho e das ideias de Keynes ao longo de muitos anos.
[4] Essa e outras críticas à Alemanha nazista foram omitidas da tradução alemã, evidentemente que com a permissão de Keynes; ver Borchardt 1988. Embora ciente da versão da Yale Review, Borchardt prefere citar o ensaio de The collected writings, desse modo superestimando seu teor liberal.
[5] Este trecho deveria constar de The collected writings depois de “Pois não se pode esperar que eu aprove todas as coisas que hoje são feitas no mundo político em nome do naturalismo econômico. Longe disso.” (Keynes 1982b, 244). Do mesmo modo, a versão em The collected writings omite alguns outros trechos, de pouca importância, que aparecem na Yale Review. Não se vê nenhuma indicação, por parte do editor da compilação, de que a versão nela incluída seja diferente daquela publicada na Yale Review; além disso, ele identifica erroneamente a edição da revista, datando-a do “verão de 1933”.
[6] Ao longo de sua carreira, Keynes foi um crítico incansável do princípio do laissez-faire. “The end of laissez-faire” (Keynes 1972, 272–294) é o título daquele que talvez seja o ensaio mais polêmico que escreveu. À época (1926), foi objeto de uma resenha de autoria do economista liberal italiano Luigi Einaudi (de modo algum um “doutrinário”), que comentou que o folheto não era exatamente original, nem era dotado de particular importância: a ideia de que ele representaria algum tipo de ponto histórico decisivo era “a mais pura fantasia” de críticos precipitados. Einaudi pergunta por que Keynes, “depois de ter voltado a pôr a regra do laissez-faire fora de combate, como princípio científico, não dedicou mais algumas páginas ao exame da importância que atualmente se atribui a essa regra, como norma prática de conduta? … Será mesmo que a importância prática da regra do laissez-faire para a conduta dos homens é hoje menor que ontem?” Mesmo que as tarefas do governo tenham se tornado muito mais numerosas, essa concessão não “comprova a decadência da regra do laissez-faire, uma vez que é bem provável que, no mesmo período da ampliação da atividade pública e interferência em alguns setores da vida econômica, tenha ocorrido crescimento bem maior de novos tipos de atividade, nas quais o valor da antiga regra do laissez-faire ainda permanece intacto” (1926, 573).
Ralph Raico - Mises Brasil
Quem recebe bolsa do governo não deveria poder votar

Nota da edição:
Nos EUA, a última paralisação do governo federal trouxe à tona o debate sobre as pessoas que recebem uma espécie de “bolsa família” do Programa Nacional de Assistência Alimentar (SNAP na sigla em inglês) do governo. Esse benefício, que consiste em vouchers que as pessoas podem utilizar para a compra de alimentos, ficou popularmente conhecido como “food stamps” e foi cortado suspenso durante a paralisação. O artigo a seguir traz uma reflexão importante sobre esses e outros recebedores líquidos de dinheiro estatal que pode ser pertinente ao debate brasileiro.
A recente paralisação do governo federal nas últimas semanas trouxe à tona o custo integral de muitos programas governamentais, incluindo o programa de vale-alimentação (food stamps). Muitas pessoas — especialmente aquelas que não acompanham de perto os gastos do governo federal — ficaram chocadas ao descobrir que um em cada oito americanos — 12% da população — recebe os chamados food stamps. Isso equivale a aproximadamente 42 milhões de pessoas. Além disso, a maioria dos beneficiários do programa recebe também outras formas de “assistência social” do governo.
Para muitos, essas estatísticas que circulam pelas redes sociais e entre podcasters serviram para destacar o tamanho impressionante da parcela da população americana que recebe dinheiro estatal como parte substancial de sua renda.
Isso levanta uma pergunta importante: se uma parte significativa da renda de uma pessoa vem de impostos, essa pessoa deveria ter o direito de votar para garantir a si mesma ainda mais dinheiro vindo dos impostos?
Alguns acreditam que não. Uma mulher, por exemplo, recebeu 64 mil curtidas ao afirmar: “Eu não acho que essas pessoas deveriam votar. Honestamente, como alguém pode votar livremente quando está sendo comprado?”
Ela está certa.
Essa é, no mínimo, uma posição polêmica. Ainda assim, muitas das pessoas que reagem escandalizadas à ideia certamente também considerariam algo ruim se um político votasse “sim” para conceder um contrato governamental à própria empresa dele. Isso ocorre porque muitos compreendem que estar em posição de votar para direcionar a si mesmo mais dinheiro dos contribuintes configura um claro conflito de interesses. Historicamente, esperava-se que um membro de um conselho municipal ou legislatura se abstivesse de votar quando pudesse se beneficiar financeiramente de sua própria decisão. Entende-se que alguém que vota nessa situação não está votando “livremente”, mas sim enviesado a favor do próprio enriquecimento às custas dos demais.
No entanto, poucas pessoas refletem duas vezes quando um eleitor deposita seu voto em um político que prometeu lhe entregar mais dinheiro dos contribuintes. Às vezes, em nível estadual, os próprios eleitores votam para se enriquecer diretamente por meio de iniciativas populares e referendos. E nos dizem que tudo isso é perfeitamente aceitável, porque votar seria, supostamente, uma espécie de direito sagrado.
Quantas pessoas vivem às custas dos contribuintes?
Quantos eleitores — ou pelo menos potenciais eleitores — estão utilizando os contribuintes como seu cofrinho pessoal?
Embora as controvérsias recentes em torno do vale-alimentação tenham colocado esse programa em destaque, o food stamp é apenas a ponta do iceberg. O número de americanos que recebem renda mensal financiada por impostos vai muito além dos 41 milhões que utilizam o vale-alimentação. Por exemplo, 72 milhões de americanos recebem Previdência Social, e 65 milhões desses também recebem serviços de saúde custeados por impostos por meio do Medicare.
Sim, beneficiários da Previdência Social gostam de afirmar que “pagaram para o sistema” e que agora recebem seus pagamentos a partir de algum tipo de fundo fiduciário imaginário. A realidade, porém, é que Social Security e Medicare são financiados 100% por trabalhadores atuais. Ou seja, os programas não passam de uma transferência de renda de trabalhadores para aposentados. Em todo sentido — exceto no discurso — Social Security e Medicare são apenas programas assistenciais, e todo político sabe que seus eleitores idosos esperam que ele continue explorando os contribuintes atuais para manter os aposentados satisfeitos.
Há ainda 70 milhões de americanos atendidos pelo Medicaid. Em muitos casos, os serviços do Medicaid equivalem a milhares de dólares por mês para seus beneficiários.
Não podemos simplesmente somar esses números, porém, porque há muita sobreposição entre os programas. Por exemplo, 78% dos beneficiários de vale-alimentação também são elegíveis para o Medicaid. Além disso, como estamos tratando tudo isso no contexto do voto, devemos remover as crianças — que não podem votar — das contagens[i].
Os beneficiários do Medicare estão quase todos inscritos no Social Security, portanto o grupo “Previdência Social e/ou Medicare” totaliza aproximadamente 72 milhões de adultos. A esse número podemos somar os beneficiários adultos do Medicaid, que correspondem a cerca de 60% do total de inscritos. Isso equivale a cerca de 42 milhões de adultos. Mas também precisamos remover os 12 milhões de beneficiários do Medicaid que também recebem Medicare, já incluídos na categoria anterior. Isso significa que podemos acrescentar 30 milhões de adultos no Medicaid aos 72 milhões no Social Security. Em seguida, podemos adicionar os beneficiários adultos do vale-alimentação que não estão incluídos no Medicaid, o que representa mais 5,4 milhões de adultos. Chegamos, assim, ao total aproximado de 107 milhões de residentes adultos nos EUA que recebem algum tipo de assistência social — e isso sem sequer considerar o TANF, auxílio-moradia (Seção 8) ou outros programas menores.

Número total de adultos nos EUA (em milhões) que receberam pagamentos do governo federal americano em bolsas e serviços, sendo eles (de cima pra baixo): Previdência Social e/ou Medicare; Adultos que recebem pagamentos do Medicaid mas que não estão no Medicare; Militares, prestadores de serviços para o governo federal americano e trabalhadores diretos do governo; adultos que recebem os chamados food stamps (sem receberem também fundos do Medicaid) | Imagem retirada do site do artigo original.
Não se esqueça dos funcionários públicos e contratados pagos com dinheiro de impostos
Naturalmente, as pessoas que recebem os chamados “benefícios sociais” não são as únicas que vivem da generosidade compulsória dos contribuintes. Há pelo menos 10 milhões de outras pessoas cujos salários vêm diretamente dos impostos. Por exemplo, existem 2,2 milhões de servidores civis federais, 1,3 milhão de militares, 400 mil funcionários dos correios, 1,8 milhão de trabalhadores pagos por bolsas federais, e mais de 5 milhões de prestadores de serviços contratados pelo governo federal. Essa última categoria inclui engenheiros e profissionais de alto nível que produzem armamentos para o Pentágono ou prestam “consultoria” para os departamentos de Agricultura, Estado e outras agências[ii].

Força de trabalho completa do governo federal americano, incluindo empregos “mistos” entre 1984 e 2020. As cores representam as seguintes modalidades: Azul = servidores federais; Laranja = militares; Cinza = serviço postal; Amarelo = prestadores de serviços por contrato; Preto = subsídios | Imagem retirada do Brookings Institution
Muitos contratados e funcionários diretos do governo federal dirão que não pertencem à mesma categoria que os beneficiários de assistência social, porque eles “trabalham”. Porém, do ponto de vista das transferências tributárias e da política fiscal, não há diferença alguma. A questão aqui não é moralidade, virtude ou merecimento de quem recebe um cheque pago com impostos. Estamos apenas destacando os milhões de americanos cuja renda se baseia em uma transferência forçada de riqueza dos contribuintes para o bolso dos destinatários.
Nesse sentido, contratados federais e outros trabalhadores públicos se assemelham a todos os que vivem de dinheiro proveniente de impostos: todos eles possuem justificativas próprias para reivindicar o direito ao dinheiro dos contribuintes. Tentar convencê-los do contrário costuma ser um esforço inútil, e por razões que Upton Sinclair apontou há muito tempo: “É difícil fazer um homem compreender algo quando seu salário depende de ele não compreender”.

Percentual total de adultos americanos recebendo pagamentos provenientes dos pagadores de impostos. De azul claro, é possível ver que apenas 54,1% dos adultos americanos não recebe alguma forma de subsídio governamental | Imagem retirada do artigo original
Mas, seja qual for a justificativa apresentada pelos aproximadamente 117 milhões de americanos que vivem da “generosidade” dos contribuintes, o fato permanece: pelo menos um terço da população dos Estados Unidos — quase 45% da população adulta — recebe muito dinheiro proveniente de impostos. E pior: ainda não estamos incluindo aqui todos os servidores de governos locais financiados por verbas federais, estudantes e professores de universidades sustentadas por subsídios federais, ou usuários de programas menores, como o LIHEAP (programa de assistencialismo para compra de energia para famílias de baixa renda). Ainda assim, encontramos quase metade da população americana recebendo salários ou “benefícios” financiados pelos contribuintes.
Quando burocratas, assistidos e contratados governamentais superam os contribuintes
Então, devemos realmente acreditar que essas pessoas votariam algum dia por cortes substanciais nos gastos do governo? Todo político conhece essa resposta. Ele sabe que milhões de contratados governamentais e militares jamais apoiarão um candidato que proponha reduzir significativamente o orçamento das Forças Armadas. Os políticos sabem que se opor à Previdência Social é suicídio político. Hoje em dia, até mesmo questionar o Medicaid tornou-se eleitoralmente perigoso, já que tantos milhões de eleitores dependem de seus serviços financiados por impostos.
Mesmo que apenas metade desses 116 milhões de adultos sustentados por verbas públicas vote, ainda assim representa uma parcela enorme dos 150 milhões de eleitores que participaram das eleições de 2024. Afinal, o total de adultos nos Estados Unidos é cerca de apenas 258 milhões de pessoas.
Isso tudo ilustra por que o governo dos Estados Unidos nunca irá conter os gastos ou lidar seriamente com o problema crescente da dívida e dos déficits — a menos que enfrente uma crise aguda de endividamento soberano ou algum evento quase golpista, provavelmente violento. Os cerca de cem milhões de americanos que dependem dos gastos federais para sua renda simplesmente não permitirão que qualquer reforma real aconteça. Dívida descontrolada e gasto público explosivo já estão incorporados ao sistema. Não há saída legal ou ordenada para isso.
A dinâmica política em ação aqui foi explicada por Ludwig von Mises há muito tempo. Em seu pequeno livro Burocracia, Mises examinou esse problema no contexto dos funcionários governamentais. Em uma seção intitulada “O burocrata como eleitor”, Mises afirma:
“O burocrata não é apenas um funcionário do governo. Ele é, sob uma constituição democrática, ao mesmo tempo eleitor e, como tal, parte da soberania política, sendo também seu empregador. Ele se encontra em uma posição peculiar: é simultaneamente patrão e empregado. E seu interesse pecuniário enquanto empregado supera enormemente seu interesse enquanto patrão, pois ele recebe muito mais dos cofres públicos do que contribui para eles.
Essa relação dupla torna-se ainda mais significativa à medida que aumentam as pessoas na folha de pagamento do governo. O burocrata-eleitor está muito mais interessado em aumentar seu próprio salário do que em manter o orçamento equilibrado. Sua principal preocupação passa a ser inchar a folha de pagamento”.
Mises prosseguiu analisando o surgimento de grupos de interesse poderosos na França e na Alemanha nos anos que antecederam “a queda de suas constituições democráticas.” Ele explicou:
“Não havia apenas a multidão de funcionários públicos e os empregados em setores nacionalizados da economia (como ferrovias, correios, telégrafos e telefonia). Havia também os beneficiários do seguro-desemprego e da previdência social, bem como os agricultores e outros grupos que o governo subsidiava direta ou indiretamente. A principal preocupação deles era obter mais recursos dos cofres públicos. Eles não se importavam com questões “ideais” como liberdade, justiça, império da lei ou bom governo. O que queriam era mais dinheiro — e nada além disso. Nenhum candidato ao parlamento, assembleias provinciais ou conselhos municipais podia correr o risco de se opor ao apetite dos funcionários públicos por aumentos salariais. Os diversos partidos políticos competiam entre si para ver quem seria mais generoso”.
Mises concluiu:
“A democracia representativa não pode subsistir se grande parte dos eleitores estiver na folha de pagamento do governo. Se os membros do parlamento deixarem de se considerar mandatários dos contribuintes e passarem a se ver como representantes daqueles que recebem salários, subsídios, auxílios e outros benefícios do Tesouro, a democracia está perdida”.
A lógica dessa posição é simples. Se os pagadores de impostos que realmente pagam a conta forem superados — em número ou em influência política — pelos que vivem de recursos tributários, o sistema econômico tenderá, inevitavelmente, ao gasto desordenado, levando, no fim das contas, à falência.
Os Estados Unidos já avançaram muito nesse caminho.
Ryan McMaken - Mises Brasil