sexta-feira, 18 de abril de 2025

'Viva a festa de Xuxa', por Tiago Pavinatto

O Estado brasileiro tem sido o STF — napoleônico, o Pretório não se cansa de tomar a coroa das mãos do papa


Foto: Revista Oeste/Feito por IA

As portas do autoritarismo, em qualquer Estado, abrem-se mais e mais à medida que autoridades oficiais passam, como ensina Joseph Campbell em O Poder do Mito, a ser tratadas como personalidades mitológicas.


Revestido Alexandre de Moraes com algum véu da mitologia, convém compartilhar a tese da doutora Lídia Reis de Almeida Prado — jurista, psicóloga e minha professora nas Arcadas — sobre as dificuldades psicológicas dos magistrados: (i) o trato com problemas humanos; (ii) o fenômeno da inflação da persona (o juiz tenta ser divino e sem máculas, mas acaba descomedido por se considerar a Justiça encarnada); e (iii) o fenômeno da sombra (resultado da ligação entre o ato de julgar e o de projetar, por mecanismo inconsciente, seus próprios sentimentos e atributos indesejados). 

Não bastassem os fenômenos interiores comuns a todos os juízes, Alexandre conta, ainda, com os estímulos de quase metade da população brasileira. 

Nos carnavais do Mensalão, quando toda suspeita ainda recaía sobre o Zezé, a barreira da personalidade mitológica foi rompida e, dessa figura enigmática, surgia nosso BatLaw: Joaquim Barbosa teve a cara estampada nas máscaras dos foliões, que, louvando a Justiça, urinavam o excesso etílico ao longo das vias públicas (validando as primorosas lições de Roberto DaMatta). 


O então ministro do STF Joaquim Barbosa, durante o julgamento do Mensalão (11/9/2012) | Foto: José Cruz/Agência Brasil

Anos mais tarde, tempo no qual Maria não enfrentava mais problemas em escolher o sapatão à sapatilha, o herói do brasileiro médio tinha novo nome e sobrenome: Sergio Moro; que será, mais tarde, desmoralizado por ministros do Supremo e, surpreendentemente, por si próprio (tal como Barbosa). 

Porque o Brasil não é para amadores, Barbosa e Moro rastejaram diante daqueles que, nos seus respectivos tempos de herói, puseram para rastejar diante deles. Por sua vez, aqueles humilhados e, hoje, exaltados esqueceram todos os ferozes insultos e discursos de ódio contra outro magistrado, que, agora, exaltam, louvam, veneram e adoram em pé — moral da história: em terra que ninguém presta, todo mundo se entende em algum momento.


Sergio Moro | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasi

Máquina de fazer bandidos tal qual Simão Bacamarte a fazer doidos — isto é, de transformar inocentes em bandidos e, mutatis mutandis, bandidos em inocentes —, em cortadas coordenadas com o Ministério Público, Alexandre de Moraes não se importa com a ilegalidade das prisões, com o tempo delas, com o sigilo das colaborações, com a vida e a integridade física e mental dos presos e das suas famílias. Moraes não se deixa intimidar pela lei; não se deixa intimidar pelo Estado Democrático de Direito. L’État c’est lui! 

O Estado é Alexandre, mas também é o ministro Barroso, que, a despeito do princípio processual da inércia do juiz, disse ter assumido papéis que qualquer Corte constitucional não tem nas democracias. 

Mas ele não pode assumir!

 

Ministro Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, presidente do STF, participam do desfile de 7 de Setembro, em Brasília (7/9/2024) | Foto: Antonio Augusto/STF


Contudo, porque os entusiastas de Moro aplaudiram, os rivais torcedores hão de sempre aplaudir e incentivar qualquer quebra do Direito posto contra o time oposto… mas, agora, essa quebra dá PT, perda total, pois falamos da instância última da esfera judicial. 

O Estado brasileiro tem sido o STF. Napoleônico, o Pretório não se cansa de tomar a coroa das mãos do papa: permissão ao casamento homossexual; inserção da homofobia como racismo; fatiamento do impeachment de Dilma Rousseff; competência para julgar cidadãos sem foro especial enquanto nenhuma “autoridade privilegiada” tivesse sido denunciada; aceitação de mais de 1,6 mil ações criminais originadas de um inquérito que deveria estar arquivado na forma da Lei nº 8.038/1990; condenações de sujeitos isoladamente indefesos em penas muito superiores àquelas de criminosos hediondos; legislar julgando; aniquilar a Constituição e dizer que a defende. 

Tudo isso sem falar do “pega, estica e puxa” com o próprio Regimento Interno, como: Marco Aurélio afastou o presidente do Senado de forma antirregimental, ilegal e inconstitucional; mais tarde, todos decidiram que um vídeo disponível na internet equivaleria a crime cometido nas dependências do Tribunal se assistido em alguma das suas privadas. 

Às favas, devem dizer, pois o povo clamava por isso! Todavia: se é pra ser ilegal, uma bala seria muito mais eficaz! Não é apenas o STF: O Tribunal Superior do Trabalho (TST) sempre se fantasiou de Luís XIV. Não são de hoje as obrigações sem respaldo legal, especialmente a da responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços pelas obrigações trabalhistas não adimplidas pela empresa prestadora. Mas a Constituição não nos garante que somos obrigados a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa somente em virtude de lei? 

Às favas! 

O notável saber jurídico foi transformado em despotismo esclarecido? Às favas! Ao ritmo de Xuxa, todos dançam Pega, Estica e Puxa. Viva os justiceiros! Viva Lampião! (Ouvem-se tiros para o alto.) 

Em Brasília, o Judiciário nem sequer pode ser chamado de Justiça; nem sequer conserva qualquer mera aparência da Justiça de um Estado de Direito posto, que foi transformado em medida populista com denominação institucionalmente pomposa a exemplo da dilmesca “nova matriz econômica” e do “arcabouço fiscal” haddadista. Não estivesse em cena, seria apenas tragédia anunciada. 

Todavia, apesar do inimaginável investimento dos produtores, cenário, figurino, roteiro, autores e atores são mambembes. A plateia crítica ainda permanece sentada nesse teatro, pois sabe que o verdadeiro espetáculo virá com a queda do pano.

Tiago Pavinatto - Revista Oeste