Morgan Freeman e Clint Eastwood em cena do filme de 1992, que levou quatro estatuetas no Oscar| Foto: Divulgação
Clint Eastwood completou 94 anos de vida na sexta-feira (31). Deve estar finalizando a produção de seu próximo e, dizem, último filme. Não me impressiona ainda trabalhar com essa idade, mas como consegue ser constante, tanto no ritmo de obras lançadas – raras vezes com intervalo superior a dois anos –, como na qualidade, com a grande maioria sendo de bons filmes, sempre contando histórias sem maiores firulas ou invenções.
Não saberia apontar meu preferido. Atualmente, creio que seria Os Imperdoáveis, de 1992, que ganhou diversos Oscar, dentre eles o de Melhor Filme e Direção – e Clint só perdeu o de Melhor Ator porque foi o ano de Perfume de Mulher, com um Al Pacino incomparável. A obra, disponível no streaming do Max, envelheceu bem, ganhando uma aura de clássico, como se fosse da era de ouro dos westerns, vivida entre os anos 1930 e 1950. Quando foi lançada, porém, o gênero não tinha tanto apelo, embora um ou outro filme aparecesse aqui e ali, como Dança com Lobos, que levou o Oscar de 1990. Aliás, na história da premiação, apenas mais um faroeste foi agraciado, Cimarron, que ganhou em 1932.
Andei relendo também algumas críticas e análisese sigo espantado como poucos críticos destacam algo que me parece essencial: os textos de abertura e encerramento. Não são um prólogo e epílogo, ou seja, algo que vem antes e depois da história contada. São partes integrantes, seus começo e fim efetivos, revelando que a obra possui duas narrativas. Uma é a mostrada em imagens. A outra é a que vai nesses textos, que se deixa implícita na maior parte do tempo, mas que transparece com clareza no último deles, encerrando o filme, descrevendo o caráter e personalidade de William Munny, o protagonista interpretado por Clint, como sendo “um conhecido ladrão e assassino, um homem de temperamento notoriamente cruel e destemperado”.
Entretanto, a narrativa em imagens nos mostrou um homem diferente, atormentado moralmente e fiel à esposa falecida. Alguém cruel e destemperado seria assim? Não se sabe a autoria desses textos, talvez sejam do biógrafo que aparece acompanhando o fora-da-lei English Bob (Richard Harris) e, depois, o xerife Little Bill Daggett (Gene Hackman). Quando trocou de biografado, do vilão para o xerife, foi porque o suposto grande homem por trás do grande feito havia se desfeito com a humilhação que Daggett fez Bob passar, revelando que sua história era feita mais de mentiras. Mas a de Daggett não era diferente, sendo tão vaidoso quanto Bob. E, tal qual, terminou humilhado, agora por Munny, sobre quem o biógrafo testemunhou, enfim, um dos “grandes feitos” que queria escrever, mas só conhecia de ouvir falar.
É razoável imaginar, portanto, que os textos tenham sido escritos por este biógrafo ou alguém como ele, pois só quem não conheceu a vida de Munny entre o retorno da “aposentadoria” e aquela atitude aquiliana de vingar a morte de seu amigo Ned, interpretado por Morgan Freeman, poderia afirmar que ele seria “notoriamente cruel e destemperado”. Narrativas assim são típicas do imaginário do velho oeste, em que os homens, vilões ou mocinhos, são retratados como fortes, duros, calejados, prontos para matar ou morrer, mas nunca frágeis, mais humanos, que é como são mostrados na outra narrativa, sejam heróis ou bandidos.
Sem lição de moral
É na fragilidade dos personagens que está o melhor do filme. Munny e seus dois companheiros tentam cumprir sua missão de vingar a prostituta cortada por um cowboy, visando a recompensa ofertada, enfrentando antes de tudo suas deficiências físicas, sejam decorrentes da velhice, como no caso de Munny e Ned, seja do corpo, como a miopia que fazia o jovem que os acompanhava não enxergar nada à distância. Mas havia também o dilema moral. Munny e Ned tinham sido foras-da-lei no passado, mas, agora, ambos tinham se ajeitado na vida, não eram mais quem foram, tanto que Ned paralisou na hora de matar o cowboy, desistindo de voltar a ser um assassino.
Também o jovem Scholfield, que gostaria de ter a fama de Munny, quando se deu conta do que isso realmente significava, desistiu de matar, preferindo não se tornar um homem mau. Apenas Munny não recuou, embora a todo tempo claramente atormentado moralmente por sua decisão de voltar à vida de antes, sabendo-se um homem ruim, como disse explicitamente à prostituta. Por que o fez? Por que não desistiu como os demais? Porque se considerava um imperdoável. Eis um dos temas preferidos trabalhados por Clint Eastwood em vários de seus filmes, como em Menina de Ouro e Gran Torino: como alguém imperdoável poderia se redimir, se for possível tal redenção?
E o melhor de Clint Eastwood é que não tenta nos catequizar, passar lição de moral ou algo assim. Não, seus filmes retratam esse drama moral sem escapar por saídas fáceis, ainda que desejáveis, sejam finais felizes ou espetacularmente trágicos. Seus personagens costumam terminar carregando suas culpas. É o caso de Munny. Na superfície, parece continuar sendo o homem mau de antes, mas não é. É um homem arrependido que não encontrou o perdão, tentando fazer o certo, mesmo consciente de que isso não apaga nem anula os malfeitos do passado. Homens assim precisam ser durões, mas como seu personagem em Menina de Ouro fala a certa altura à sua pupila: “Pequena, ser dura não é o suficiente”. Talvez esteja aí o segredo da longevidade de Clint Eastwood: não se acomodar com a insuficiência.
Francisco Escorsim, Gazeta do Povo