Apoiadores do então presidente Donald Trump invadem o Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021| Foto: Jim Lo Scalzo/EFE/EPA
Durante a adolescência, tempos de universidade e início da vida profissional, tratei de me abastecer com conteúdos sobre globalização e sociedades planetárias, intercontinentais. Buscava entender essas tendências a fim de me preparar para a vida sob a tutela de governos autoritários, caso isso se tornasse realidade no “futuro”. Uma pergunta emergiu: seria possível países com sólida formação, tais como Estados Unidos, Canadá e nações da Europa Ocidental, optarem por uma forma de regime político despótico? Para tanto, alguém precisaria implodir a democracia. Pois é, isso já está em curso, o “futuro” chegou.
Em 18 de agosto de 2023, The Washington Post publicou a até então impensável manchete: “American democracy is cracking” (Democracia norte-americana está rachando). Para Dan Balz e Clara Morse, nem mesmo os cidadãos nascidos e criados sob o âmbito das liberdades apostam mais na democracia. O vírus antidemocrático se inoculou nas tradicionais sociedades ocidentais e iniciou o processo de esfacelamento desse regime em escala mundial.
Em doses homeopáticas, instalam-se ditaduras de togados, na qual os valores se invertem e os privilégios se acumulam
Paulatinamente, a democracia derrete. Os direitos coletivos são minados e os individuais ignorados, depreciados, proibidos. Isto não diz respeito ao Irã, Coreia do Norte, Cuba ou Venezuela – experientes em silenciar e aterrorizar multidões –, mas à União Europeia, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Israel e até mesmo ao Brasil.
A mentira se tornou verdade, e a verdade é considerada fake news, expressão distorcida do contexto original. Qualquer comentário contrário ou crítica à paranoia global de governos atordoados assume a forma de falsificação, descrédito. Vozes dissidentes são estereotipadas como inimigas, críticas e disseminadoras de notícias fabricadas. Ou você concorda com essa estupidez ultrajante e incontrolável ou se posiciona na linha de fogo dos arrogantes e rotulados como politicamente corretos, proprietários de uma suposta “verdade”. O mundo se polarizou em extremos incontroláveis, capazes de sacrificar o regime democrático em nome de um devaneio.
A capacidade de mobilizar as massas por meio de palavras de ordem pavimenta o caminho para o engajamento irresponsável da imprensa com fantasias causadoras de colapsos sociais, políticos e econômicos regionais e globais. Lembre-se de “O trabalho liberta” (Arbeit macht frei), “Sempre para a vitória”, “Em nome da democracia”, “A esperança venceu o medo”, “Foi o maior ataque terrorista da história”, “Árabes atacam, Israel responde”, “Fique em casa”. Agora são os “Atos antidemocráticos”, “Ações golpistas”, “Estado democrático de direito”, “Perigo fundamentalista” e outras expressões que moldam o quadro do vexame, do patético.
Justamente a educação, o Judiciário e a “velha” imprensa coparticipam da derrocada democrática ao empregarem a mentira descarada, o cala-boca e a distorção dos fatos. Constata-se, assim, as instituições que resguardaram a democracia durante os últimos 250 anos dilapidando as liberdades coletivas e individuais.
O vírus antidemocrático se inoculou nas tradicionais sociedades ocidentais e iniciou o processo de esfacelamento desse regime em escala mundial
Os governos ocidentais estão aniquilando as instituições que sustentaram a democracia. O sistema educacional de muitos países trocou a educação pela ideologia político-partidária e pelo lucro desenfreado. Em outros casos, simplesmente ignorou a sua importância na base socioeconômica, tornando-a irrelevante, desnecessária, a fim de alienar os currais e enclaves eleitorais.
Os sistemas judiciários substituíram a honestidade, a segurança pública, os direitos individuais e coletivos pelos interesses de juízes, promotores, defensores públicos e procuradores. Em doses homeopáticas, instalam-se ditaduras de togados, na qual os valores se invertem e os privilégios se acumulam.
Ao destruir a credibilidade da imprensa, ou ela mesma se implodir, o próprio Estado passa a perseguir os jornalistas remanescentes e a incentivar o desmantelamento da academia que preparava profissionais para o jornalismo. A partir disso, tudo se extingue e qualquer possibilidade de desenvolvimento do pensamento crítico se configura improvável.
De repente, magistrados, professores, jornalistas e parlamentares se converteram em “especialistas em democracia”. É risível amadores se esforçando para explicar o indefinível. Democracia não se impõe, não se promove, simplesmente se aceita, caso contrário não pode se chamar “democracia”. É necessário ler nas entrelinhas das narrativas jornalísticas para detectar os propósitos das construções textuais.
Com naturalidade, o regime democrático se aperfeiçoa com o tempo à medida que desafios emergem diante da sociedade. Quando o sentido do termo se torna uma palavra de ordem distorcida e difundida pela imprensa, os cidadãos desinformados abraçam outros poderes ortodoxos, nada transparentes, centralizadores, tiranos, ou simplesmente caem na armadilha e são obrigados a servir os usurpadores palacianos.
Ao não aprenderem a dialogar de forma civilizada, o ímpeto dos decretos e da força judicial autoritária de autoproclamados mandatários estabelece um estado de terror policial, a medida final da violência das ideologias desumanizadas.
Ruben Dargã Holdorf é doutor em Comunicação e Semiótica
Ruben Dargã Holdorf, Gazeta do Povo