Ministro do STF Alexandre de Moraes| Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
Imagine que um juiz, depois de cometer um crime, é pego em flagrante pela polícia, que o leva para o tribunal para sua audiência de custódia. Os policiais que o capturaram se olham, orgulhosos: não é todo dia que eles apanham um peixe grande desses. Entra um servidor da Justiça na sala e grita: “Ordem no tribunal, o juiz está entrando!”. Aí o juiz criminoso, para a surpresa dos policiais, se levanta da cadeira do réu, caminha até a cadeira do juiz, senta-se nela e absolve a si mesmo do crime que praticou. Para piorar, manda prender os policiais que o flagraram cometendo o crime.
Se você achou essa cena acima absurda, então prepare-se para ficar ainda mais indignado com a realidade: algo similar - mas pior - acabou de acontecer aqui no Brasil. O ministro Alexandre de Moraes, também conhecido como censor-geral da República, segundo seu coleguinha Dias Toffoli, absolveu a si mesmo, ou livrou ele mesmo de uma possível punição. O ministro cassou uma sentença condenatória de um juiz federal do Paraná que havia reconhecido um erro de procedimento ou abuso do próprio Alexandre de Moraes e condenado a União a indenizar em R$ 20 mil o ex-deputado paranaense Homero Marchese, do partido Novo.
Para resumir a história, o que aconteceu foi o seguinte: Moraes derrubou todas as redes sociais de Homero com base em uma informação falsa de que ele teria revelado a localização do hotel dos ministros durante uma viagem dos togados para palestrar em Nova York. Homero jamais foi notificado para se defender e só descobriu que suas redes tinham sido derrubadas por ordem de Moraes quando ligou para o gabinete do ministro no Supremo. Um mês depois dos bloqueios, Moraes reativou as contas de Homero no Facebook e no X, mas esqueceu do Instagram. Homero ficou 6 meses praticamente banido das redes sociais.
Desde há muito tempo erros judiciais, como a prisão da pessoa errada, são passíveis de indenização. Diante disso, o próprio Homero processou a União, que responde judicialmente pelos ministros do Supremo, e ganhou o caso. Mas a AGU entrou com uma reclamação no Supremo, distribuída para o próprio Moraes, para derrubar a sentença condenatória conseguida por Homero. Há nesse caso 5 flagrantes e absurdas ilegalidades:
1) Moraes jamais poderia decidir este caso, porque ele tem interesse direto em seu resultado, já que tratava da conduta dele mesmo e ele poderia vir a pagar a multa em última análise, já que a União poderia cobrar dele o valor no futuro em uma ação de regresso. O Código de Processo Penal, em seu art. 252, inciso IV, diz que o juiz não pode decidir quando ele próprio for interessado no resultado do julgamento. Ter interesse no processo é uma causa de impedimento absoluto do juiz, que torna suas decisões piores do que nulas: elas são inexistentes juridicamente.
Além disso, todo o caso gira em torno do fato de que Moraes cometeu um erro procedimental. Ao cassar a sentença que condena a União a indenizar o Homero por um erro dele mesmo, Moraes está, na prática, julgando e absolvendo a si mesmo de qualquer erro, o que, mais uma vez, viola as regras de impedimento. Mas Moraes, o Infalível, não se declarou impedido. O ministro é expert em decidir casos que não deveria: você lembra de quando ele mandou prender duas pessoas investigadas por ameaças a ele mesmo e sua família, mas só se julgou impedido depois das prisões, que até hoje não foram revogadas?
2) O STF não tem competência para julgar a reclamação da União contra a decisão do juiz. A reclamação é uma ação que pode ser utilizada quando algum juiz ou tribunal usurpa competência do Supremo ou para preservar a autoridade de decisões da Corte. Ocorre que a sentença condenatória do juiz federal de 1ª instância não fez isso: em nenhum momento ele anulou, revogou, alterou ou interferiu em decisões tomadas por Moraes, mas apenas reconheceu um dano objetivo causado a Homero por um erro judicial e que deve ser indenizado pelo Estado.
Na reclamação, a AGU fez uma alegação fantástica: só quem pode reconhecer as ilegalidades das decisões do ministro Alexandre de Moraes é o próprio ministro Alexandre de Moraes. Pior ainda, a AGU disse que Homero só poderia pleitear o pedido de indenização dentro do inquérito das fake news, para o próprio Moraes. As alegações são esdrúxulas, ridículas e patéticas: o Supremo não tem competência para ações cíveis de indenização, e ações deste tipo jamais poderiam ser promovidas em um inquérito criminal.
É inacreditável que a AGU tenha dito isso: as duas esferas, cível e criminal, são independentes e separadas, não se confundem. Nunca se ouviu falar em ação de indenização cível em inquérito criminal. Há ainda um outro problema: é simplesmente cômico, para não falar impossível, imaginar que Homero teria qualquer chance de sucesso se pedisse ao próprio Moraes, dentro do inquérito das fake news, que o ministro condenasse a União a indenizá-lo por erros do próprio Moraes. É óbvio que a competência para analisar este caso é, sim, da Justiça Federal da 1ª instância.
3) Moraes está beneficiando a si mesmo, no que talvez seja a maior ilegalidade deste caso. Alexandre de Moraes e a AGU provavelmente perceberam que, com a vitória de Homero, dezenas, centenas e milhares de outras vítimas de Moraes vislumbraram um possível caminho para reparar os abusos do ministro, por meio de ações de indenização na Justiça Federal de 1ª instância. A AGU reconheceu isso ao dizer que a sentença continha o risco de “efeito multiplicador”. A possibilidade de que milhares de juízes condenassem a União no futuro por abusos de Moraes deve tê-los apavorado.
Mas é ainda pior do que isso: quando a União é condenada a indenizar alguém por erro de um agente público, ela pode cobrar o valor dessa indenização do próprio agente caso se comprove que ele agiu de maneira negligente ou intencional. Ou seja: o próprio Moraes estaria exposto a pagar centenas de milhares de reais em indenizações caso essas condenações começassem a pipocar na Justiça Federal de 1ª instância. Ao cassar a sentença que deu ganho de caso a Homero, Moraes corta este possível risco pela raiz e blinda a si mesmo, o que, obviamente, é um abuso de seu poder como juiz.
4) O ministro Alexandre de Moraes praticou uma violência contra a independência judicial do juiz federal de 1ª instância e pode ter cometido, em tese, abuso de autoridade, já que mandou o CNJ, investigar o juiz para as “providências cabíveis”, o que provavelmente significará puni-lo com todos os castigos imagináveis, como vimos o CNJ fazer de modo abusivo e ilegal contra juízes e desembargadores que atuaram na Lava Jato. O art. 27 da Lei de Abuso de autoridade considera crime “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício (..) de ilícito funcional ou de infração administrativa".
5) Ao decidir em caso que está impedido, o que é uma situação mais grave do que a da mera suspeição, e por violar o decoro do cargo julgando em benefício próprio, Moraes comete, em tese, os crimes de responsabilidade previstos no inciso 2 e 5 do artigo 39 da Lei de Impeachment. Qualquer pessoa do povo pode denunciá-lo por estes crimes de responsabilidade, mas um levantamento do Estadão mostrou que, dos 77 pedidos de impeachment de ministros do Supremo no Senado, 40 são apenas de Moraes, que é até hoje blindado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. As chances de um pedido de impeachment, enquanto Pacheco estiver no cargo, são piores do que mínimas.
Até quando nós, brasileiros, gritaremos no deserto contra esses abusos judiciais e ilegalidades monstruosas do ministro Alexandre de Moraes?
Deltan Dallagnol, Gazeta do Povo