O Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes visita as instalações do Supremo Tribunal Federal após os protestos do dia 8 de janeiro, em Brasília.| Foto: EFE/ André Borges
No dia 14 de outubro, em evento em Paris que contava com a presença de políticos, o ministro Gilmar Mendes, do STF, exaltou o que considerava grandes méritos do tribunal a que pertencia, entre os quais: “Se a política deixou de ser judicializada e deixou de ser criminalizada, isso se deve ao Supremo Tribunal Federal, e aqui está um ator [indicando a si mesmo com um gesto] que chama esta reforma também de sua.”
O ministro fazia referência indireta à Operação Lava Jato, que teve grande parte de suas provas e condenações anuladas pelo STF. O ministro deu um exemplo: “Se hoje nós temos a eleição do presidente Lula, isso se deveu a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. É preciso reconhecer isso.” O presidente Lula pôde concorrer a um terceiro mandato após ter sua condenação judicial anulada pelo STF em 2021.
Uma opção de discurso comum entre os falantes da língua é se referir com palavras abstratas àquilo que se quer defender, e com palavras concretas àquilo que se quer atacar. Há casos, no entanto, em que esta opção estilística vai longe demais e resvala numa verdadeira mudança de significado do que está sendo dito. É o risco que se corre ao substituir “criminalizar políticos” (no sentido por vezes usado em círculos acadêmicos, de “submeter a investigação ou processo criminal”) por “criminalizar a política”.
As investigações que sacudiram o Brasil a partir de 2014 não buscaram criminalizar “a política” enquanto atividade, mas sim condutas como corrupção passiva ou lavagem de dinheiro. Estas atividades podem até ter sido praticadas em contexto político, mas não fazem parte da política legítima, conforme concebida pelo ordenamento jurídico.
Liberdade de crítica
Algo que faz, sim, parte da política legítima são as críticas a autoridades. Isto porque a Constituição brasileira adota o modelo da democracia liberal. A ideia é que as decisões políticas sejam baseadas no voto popular, e é reconhecida também liberdade de expressão ao cidadão, para que possa influenciar as decisões públicas além do mero voto.
A liberdade de expressão neste contexto significa, em outras palavras, liberdade de crítica, porque o elogio é livre até nas ditaduras; e a influência se dá inclusive (se não principalmente) pelo dano à reputação dos agentes públicos (nisso consistem, afinal, as campanhas eleitorais) ou até mesmo pela pressão direta, como em protestos. Goste-se ou não, é assim que se concebe “fazer política” em democracias liberais.
Adotadas estas premissas, de onde têm vindo, nos últimos anos, as pretensões de criminalizar a atividade política?
O crime de hashtag
Em 2019, o presidente do STF instaurou o Inquérito 4.781, para investigar condutas de “atingir a honorabilidade” do tribunal e de seus membros.
Em 26 de maio de 2020, no âmbito deste inquérito, foi proferida decisão informando ter sido feita busca na rede social Twitter por publicações utilizando hashtags como #impeachmentgilmarmendes (buscando influenciar eventual e futura decisão jurídico-política do Senado), #STFVergonhaNacional, entre outras. Com fundamento nestas ou outras postagens críticas ao STF, mais de vinte pessoas sofreram naquela ocasião busca e apreensão em residência, tiveram as redes bloqueadas e/ou foram ouvidas em delegacia. Entre elas, seis deputados federais (tendo sido ignorada a imunidade parlamentar).
O fato de indivíduos seguirem outros indivíduos e terem postado as mesmas hashtags anti-STF nos mesmos dias foi tratado como indício suficiente da existência de uma organização criminosa, cujo “modus operandi” incluiria o levantamento coordenado de hashtags para aparecerem na lista dos tópicos mais falados, prática absolutamente corriqueira no Twitter. A finalidade geral seria a de pressionar agentes públicos (o que o ministro Alexandre de Moraes refere como “expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário”) e influenciar a opinião pública.
O crime de “gerar animosidade dentro da sociedade”
Diversos outros inquéritos-filhos, com natureza parecida, foram abertos no STF, quer de ofício pelo mesmo relator, quer distribuídos a ele por prevenção.
Em um deles, o chamado Inquérito das Milícias Digitais, em decisão datada de 19 de agosto de 2022, o ministro Alexandre de Moraes ordenou censura, congelamento de contas bancárias e busca e apreensão contra empresários em reação a troca de mensagens entre eles em grupo de WhatsApp.
Transcrevendo a representação policial, o ministro disse enxergar indícios de que os empresários integravam organização criminosa, “focada nos mesmos objetivos: atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral brasileiro, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade dentro da própria sociedade brasileira, promovendo o descrédito dos Poderes da República, além de outros crimes.” Apesar da expressão empregada, nenhuma das condutas listadas é, enquanto tal, crime no ordenamento brasileiro.
O crime de pressionar deputados em votação
Em 10 de maio de 2023, o aplicativo de mensagens Telegram foi incluído no Inquérito 4.781, com o ministro Alexandre de Moraes ordenando a oitiva em delegacia do representante legal do aplicativo.
O motivo foi uma simples mensagem enviada aos usuários, pedindo que pressionassem seus deputados a votarem contra o PL 2.630 (conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura). A ação sugerida corresponde à forma paradigmática de participação dos cidadãos na política em uma democracia representativa.
Não foi assim que o ministro enxergou: acusou o aplicativo de “tentar impactar de maneira ILEGAL e IMORAL [caixa alta conforme o original] a opinião pública e o voto dos parlamentares” e ordenou que o aplicativo enviasse nova mensagem aos usuários, confessando suposta “tentativa de induzir e instigar os usuários a coagir os parlamentares”.
A única conclusão possível é que, em 2023, quem criminaliza a política é o STF.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Gazeta do Povo