Apesar da fachada imponente, o Hotel Nacional em Cuba é um misto de glamour histórico e decadência| Foto: Jongleur100/Wikimedia Commons
Em fevereiro de 2010 eu viajei para Cuba a trabalho. Na época, era consultora de projetos de um programa internacional de políticas públicas para museus ao qual a ilha é afiliada.
Compartilho algumas experiências dessa viagem que mais valeria ficar deixada em um canto esquecido da memória - a não ser para que os leitores possam comparar a realidade com a qual me deparei, da narrativa que será apresentada em mais uma rodada da tão falada diplomacia presidencial, já que o presidente Lula irá à Cuba este mês.
Pilhas de dinheiro
Logo na chegada, no aeroporto José Martí, em Havana, a primeira surpresa. Na época, a cotação local era de aproximadamente 90 pesos conversíveis cubanos (CUC), a moeda para turistas vigente naquele momento, para cada dólar [segundo pesquisa feita no site fxtop].
Troquei US$ 100 [R$ 491,70 na cotação de 4/09/23] logo na chegada, o que me rendeu cerca de 9.000 CUC. Literalmente, recebi uma pilha enorme de dinheiro.
Acomodei da forma como pude na bolsa de mão e, junto com os colegas de viagem, me dirigi para o Hotel Nacional de Cuba. A chegada impressiona, já que o hotel foi inaugurado na década de 1930, antes que a revolução mergulhasse a ilha na ditadura comunista dos Castro.
Glamour x decadência
Há palmeiras ladeando o acesso ao edifício e o saguão é imponente. Antes do regime comunista, o Hotel Nacional desfrutava de grande reputação internacional. Serviu, por exemplo, de residência para embaixadores dos EUA, além de abrigar a Conferência de Havana, um encontro entre a máfia americana e os integrantes da futura Cosa Nostra italiana.
A despeito do "glamour histórico", o quarto tinha cheiro de mofo e um ar decadente. Os móveis velhos e sem restauração, assim como os azulejos um pouco encardidos e manchados no banheiro deram logo uma primeira ideia do que ainda estava por vir.
Internet – é o quê?
Depois de me acomodar, retornei ao saguão para ver meus e-mails. Após extinguir o ticket de uma hora de internet, seguia sem conseguir acesso à minha conta do Google. Reclamei para o atendente, mas fiquei sem resposta.
Só depois, quando já levava quase uma semana sem ver minhas mensagens, alguém me disse, disfarçadamente, que não era possível acessar o Gmail na ilha, apenas com autorização.
Parou no tempo
No outro dia pela manhã, nos dirigimos para nosso destino final, a cidade de Bayamo, capital da província de Granma, onde ficava a direção de museus que atuava como ponto focal do programa.
O avião estava longe de ser um exemplar de última geração: pouco conforto, ruído alto e muitos tremores caracterizaram a viagem que, ainda assim, transcorreu sem maiores riscos ou danos.
Em Bayamo, o trajeto do aeroporto ao hotel mostrou mais uma vez o tom geral que permaneceria durante todo o roteiro: o de um retorno ao passado, mas não àquele nostálgico, das boas memórias. Mas sim, àquele de quem literalmente parou no tempo e não se atualizou.
Hospitalidade e fachada histórica
Assim que chegamos ao hotel, fomos recebidos pelo rapaz escolhido para ser nosso guia local. Após nos acomodarmos, ele nos levou até a direção de museus. Fizemos o trajeto em uma charrete e o caminho se assemelhava a uma pequena cidade histórica bem cuidada.
As fachadas das casas eram bem preservadas, a pintura conservada, as ruas limpas. As poucas pessoas que passavam, pareciam se importar pouco com nosso passeio de charrete, o que levava a crer que era um evento turístico comum na cidade.
Fomos recepcionados com muita dança, festa, café e outras bebidas. Em viagem oficial, fomos recebidos com toda a hospitalidade costumeira para esse tipo de ocasião. Mas a boa impressão inicial, assim como no hotel em Havana, aos poucos desapareceria com o desenrolar dos fatos.
Garapa e vias proibidas
Ao nos contar sobre as coisas boas da cidade, o guia nos falou do garapo, mais conhecido aqui como garapa ou caldo de cana, uma iguaria na cidade. A coordenadora do programa, que é espanhola, nunca tinha provado e ficou combinado de que ele nos levaria para degustar a bebida.
Na manhã seguinte, nosso guia apareceu para nos buscar no hotel e aparentava estar muito tenso. Passaríamos para provar do garapo no trajeto para a direção de museus. Nos dirigimos a pé, mas, desta vez, por uma paisagem diferente.
As casas bonitas, bem cuidadas e coloridas deram lugar a um ambiente bastante malcuidado, ruas com buracos, mato, casas deterioradas e barracos, tudo sem qualquer sinal de saneamento. Logo entendemos que essa era a verdadeira face da cidade.
Ficamos por poucos minutos no local em que o garapo era vendido. Nosso guia olhava constantemente para os lados, como se quisesse confirmar que não estávamos sendo vistos. Fomos conduzidas rapidamente para fora dali, de volta à rua bem cuidada onde tínhamos transitado no dia anterior.
Troca de guia e repreensões
Ao chegar à direção de museus, percebemos um certo mal-estar entre nossos anfitriões. A ousadia lhe custou o cargo de guia, pois ele havia cometido o erro irreparável de nos mostrar o outro lado da Bayamo histórica. Não voltamos a vê-lo.
Em uma ocasião posterior, fui conduzida por outro rapaz, uma espécie de motoboy, novamente pela parte proibida da cidade até o hotel. Depois, soube que ele também havia sido repreendido.
Monitoramento
Essas foram as únicas duas vezes em que saí do trajeto oficial, já que nossas agendas não tinham um minuto livre fora do cronograma e todos os percursos eram feitos na companhia de pessoas designadas pela direção dos museus.
Na terceira e última vez em que fui conduzida ao hotel separada do grupo, o motorista recebeu a indicação precisa de passar apenas pelas vias da parte histórica da cidade. Ele a cumpriu com esmero.
Arroz, tomate, alface x banquete do partido
Durante toda nossa estada, as refeições, embora arrumadas para causar uma boa impressão, eram bastante simples.
Arroz, salada de alface e tomate, pão, queijo, bananas, café e água. Algumas vezes, as tigelas vinham guarnecidas com pedaços de carne de porco e as quantidades eram sempre menores do que costumeiramente é oferecido nesse tipo de viagem a trabalho.
Mas houve uma exceção. Em um dos dias, nos deslocamos para uma cidade próxima e fomos a uma recepção na casa de um integrante do partido, mais próximo dos Castro.Nos foi oferecido um banquete: tigelas com cascatas de lagosta e camarão, entre tantas outras carnes de qualidade, além de uma ampla variedade de acompanhamentos e bebidas. Nem o buffet do hotel em Havana apresentava tamanha variedade.
Mercadinho de vento
Em uma das poucas vezes que nos levaram ao centro da cidade, a essa altura já tínhamos uma nova guia, bastante mais comportada que o anterior, conseguimos entrar em um mercadinho de compra para os habitantes locais.
Em Cuba, tudo é separado: as praias que os turistas e os cubanos podem frequentar são diferentes, assim como grande parte dos estabelecimentos comerciais – não se pode entrar e adquirir o que se deseja em qualquer lugar.
As prateleiras deram o testemunho do dia a dia da população local: três pacotes de sabonete – não, não são três marcas, literalmente, três embalagens de sabonete -, algumas poucas de pasta de dente e outros itens esparsos. O vazio das prateleiras era maior do que o espaço ocupado pelos itens oferecidos aos clientes.
Sem e-mail e internet no seminário sobre tecnologia
Durante a semana, por inúmeras vezes tentamos acessar nossos e-mails, sem qualquer sucesso. Técnicos de informática da direção de museus buscavam resolver a questão, como se fosse uma tarefa de alta demanda tecnológica. Um dia, chegamos a acessar rapidamente, para logo em seguida termos a conexão cortada.
Nossa missão era apresentar o programa e lançar o portal durante o Seminário Tecnologia e Museus. Foi preciso improvisar a apresentação com alguns prints das diferentes páginas do portal, pois não havia conexão à internet estável durante o evento.
Ainda assim, tivemos a apresentação mais tecnológica de todo o seminário. À época, muitas das pesquisas apresentadas eram mais simplórias que trabalhos de ensino fundamental e médio no Brasil.
Silêncio sobre a vida e pedidos secretos
Durante o último dia em Bayamo, nossa nova guia também teve seu momento de escape. Ela nos levou até a casa humilde de sua mãe, uma senhora simpática que nos recebeu de forma acolhedora. A residência ficava fora do trajeto oficial e, como tal, era desprovida do glamour histórico das construções que o compõem.
Durante a rápida visita, a guia nos deixou escapar um desejo secreto: sabonetes cheirosos e miçangas que ela gostaria de usar para fazer bijuterias. Aparentando uma tensão incomum, ela pediu segredo a respeito da encomenda, que deveria ser enviada para o endereço da mãe.
Basicamente, essa guia foi a única pessoa que nos contou algo mais de sua vida. Ainda sem dizer muito, esse foi o único relato velado e ousado sobre como é viver sob a ditadura comunista cubana.
Em outra ocasião, ela conseguiu permissão para nos levar em uma pizzaria para turistas, na qual os moradores locais não podiam comer. Pedimos uma pizza marguerita de qualidade duvidosa, da qual nos servimos com parcimônia, mas que ela degustou como uma iguaria sem similar.
Desconforto e fuga da Sierra Maestra
No retorno a Havana, não havia voo disponível saindo de Bayamo, pois os trajetos aéreos internos também são escassos. Enfrentamos diversas horas de viagem até uma cidade próxima para pegar o avião até a capital. O trajeto foi feito em um jipe extremamente desconfortável pelas estradas pouco conservadas da ilha.
Os colegas de trabalho, contudo, já estavam quase acostumados à dureza do transporte cubano. No dia anterior, haviam passado mais de 10 horas no trajeto entre Bayamo e a Sierra Maestra – foram levados para visitar o local que é um dos ícones da “Revolução Comunista Cubana”.
Nossa anfitriã, a diretora de museus da cidade, me salvou de participar de um dos “pontos altos” da agenda, ao argumentar para nosso diretor que queria que eu permanecesse com ela para assistir ao seminário naquele dia – a solidariedade das pessoas é real.
Propaganda antiamericana desde a infância
De volta à Havana, pudemos “passear” pela capital sem supervisão das autoridades, antes de retornar ao Brasil. Diferentemente do centro histórico de Bayamo, os sinais da falta de cuidado e a precariedade das construções são evidentes.
Além disso, por todos os lados havia outdoors com propaganda antiamericana ou exaltando “revolucionários” cubanos. A narrativa é incutida na população desde cedo. Crianças das escolas locais brincavam entre fardas ensanguentadas, fuzis e fotos de inimigos mortos e destroçados, lado a lado com os retratos triunfantes dos heróis comunistas no Museu da Revolução.
Câmbio e choro
Antes de embarcar para a saída definitiva da ilha, tive uma última surpresa. Depois da pizza e de alguns snacks nos hotéis, minha pilha de dinheiro havia se reduzido a cerca de 1/4 do tamanho original.
No entanto, havia um limite mínimo para a conversão de pesos cubanos em dólares, e eu não tinha o suficiente. Não pensei duas vezes antes de colocar todas as notas em um envelope e entregar para a mulher que estava no caixa, afinal de contas, não tinha nenhuma intenção de trazer souvenirs cubanos para casa.
Com a expressão estupefata, a atendente me perguntou se eu realmente iria fazer aquilo. Eu lhe disse que sim, que aquele dinheiro não me serviria de nada.
Com os olhos marejados, ela rapidamente pegou o envelope e escondeu as notas, certificando-se de que ninguém mais testemunhava a cena. O valor, acredito que não devia chegar a 25 dólares, era expressivo para ela.
Para quem ficou interessado em conhecer Bayamo e alguns dos locais citados neste texto, a página da Wikipedia sobre a cidade dá uma boa visão de como é.
Mas que o leitor não se engane: só há imagens do caminho histórico, da praça e da charrete. Não há qualquer referência à parte da cidade em que fomos levadas para tomar garapo.
Roberta Ribeiro, Gazeta do Povo