quinta-feira, 31 de março de 2022

Para juristas, decisões de Alexandre de Moraes no caso Daniel Silveira são inconstitucionais

 

Para juristas ouvidos pela reportagem, há decisões inconstitucionais por parte do STF desde a prisão de Daniel Silveira, em fevereiro de 2021| Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados


Diversas decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em relação ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) têm extrapolado os limites da Constituição Federal. A avaliação é unânime entre juristas ouvidos pela reportagem.

Moraes determinou a prisão em flagrante por crime inafiançável do deputado carioca em 17 de fevereiro do ano passado, um dia após Silveira divulgar um vídeo com ofensas e ameaças a ministros do STF. Segundo fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, desde o pedido de prisão há aspectos inconstitucionais nas decisões do ministro. Um dos apontamentos centrais é que as falas do deputado, embora condenáveis e até mesmo passíveis de punição pela Câmara dos Deputados em processo de quebra de decoro, estão inquestionavelmente acobertadas pela imunidade parlamentar.


Multa e bloqueio de bens não estão previstos na legislação criminal

Nesta terça-feira (29), Silveira prometeu “morar” nas dependências da Câmara dos Deputados por tempo indeterminado para que não fosse cumprida a ordem de Moraes de colocar tornozeleira eletrônica no parlamentar. O ministro alega que o deputado descumpriu ordem judicial ao comparecer a um evento em São Paulo no qual teve contato com outros investigados no chamado “inquérito das milícias digitais”.

Diante da conduta de Silveira, na noite desta quarta-feira (30) Moraes definiu multa diária de R$15 mil por desobediência caso o parlamentar continue se recusando a colocar o equipamento de monitoramento eletrônico. Na mesma decisão, o ministro ordenou o bloqueio das contas bancárias de Silveira. De acordo com especialistas em Direito, tal medida não encontra previsão legal.

“A decisão de aplicar multa não apenas não é comum, como é ilegal. Essa seria uma medida cautelar (decisão que visa a assegurar o cumprimento de outra decisão), contudo ela não está prevista no rol do art. 319 do Código de Processo Penal (CPP). Logo, ela seria uma cautelar que chamamos atípica. E o próprio STF tem julgado recusando essa possibilidade”, explica André Borges Uliano, procurador do Ministério Público Federal (MPF) e professor de Direito Constitucional.

Conforme explana o advogado criminalista Geraldino Santos Nunes Júnior, conselheiro da OAB/DF, multas e bloqueio de bens estão previstos no Código de Processo Civil (CPC) para casos específicos, como para impedir que alguém se desfaça de bens enquanto há dívidas a serem pagas. “A aplicação dessas medidas em um processo criminal é uma manobra, uma novidade total. Essas decisões têm sido tomadas ao arrepio do Código de Processo Penal”, afirma.


Há decisões inconstitucionais desde a prisão de Daniel Silveira, dizem juristas

A prisão do deputado, em fevereiro do ano passado, foi determinada por Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito 4.781, que apura supostas ameaças, ofensas e divulgação de fake news contra ministros do STF e seus familiares. O chamado “inquérito das fake news” foi aberto em 2019 sem alvo determinado e por iniciativa do próprio STF – ação que é vista por juristas como ilegal por, entre outros motivos, concentrar na Corte o papel de acusador, juiz e vítima. Usualmente, o Supremo age quando é provocado, seja a pedido do Ministério Público, da Procuradoria-Geral da República ou de autoridade policial. Há ainda críticas de advogados dos investigados nesse inquérito, que alegam que passados dois anos de sua abertura, o Supremo ainda não concedeu acesso dos autos na íntegra, inviabilizando as defesas.

Sobre a punição a parlamentares, o artigo 53 da Constituição determina que deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Segundo o texto constitucional, parlamentares só podem ser presos em flagrante – como ocorreu no caso de Silveira – quando tiverem cometido crime inafiançável.

Para garantir que a prisão se desse em flagrante, Alexandre de Moraes por meio de uma manobra jurídica, inovou ao trazer para a internet o conceito de “infração permanente”. Na argumentação do ministro, a disponibilização do vídeo nas redes sociais do deputado permitiria a prisão em flagrante, uma vez que no momento da prisão a publicação permanecia disponível.

Por outro lado, para configurar o delito como crime inafiançável, Moraes citou artigos da Lei de Segurança Nacional, da época da ditadura militar, que não correspondiam à conduta do parlamentar no vídeo. O artigo 17, por exemplo, falava em “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”. Já o artigo 22 coibia a propaganda “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”.

“Em primeiro lugar, houve um enquadramento forçado em delitos contra a Segurança Nacional a fim de contornar o fato de que o Código de Processo Penal só admite as medidas cautelares mais severas a delitos graves. Em segundo lugar, houve a ficção de flagrante e um contorcionismo jurídico para enquadrá-lo inafiançável, visto que esse é o único caso em que cabe prisão em flagrante contra parlamentares”, afirma Uliano.

Para agravar o caso, a Lei de Segurança Nacional foi revogada em setembro do ano passado. “Como a lei foi revogada, operou-se o abolitio criminis, ou seja, não é mais possível atribuir pena por artigos que nela constavam. Ele não poderia mais sequer responder a respeito daquilo. Existe, no meu entender, um vício a respeito disso”, afirma o advogado criminalista Márcio Engelberg.

Ao se tratar de deputados e senadores, ainda que houvesse elementos que justificassem a prisão em flagrante por crime inafiançável, de acordo com a Constituição, “nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão", diz a Constituição.

Para se justificar de não ter oficiado a Câmara para que deliberasse sobre o pedido de prisão em 24 horas, Moraes afirmou, no julgamento em que o plenário da Corte manteve a decisão de prender Silveira, que “atentar contra as instituições, contra o Supremo, contra o Poder Judiciário, contra a democracia, contra o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional do artigo 53, caput. As imunidades surgiram para a preservação do Estado de Direito”.

Para Engelberg, um dos problemas centrais do caso Daniel Silveira está justamente na tentativa, por parte de Moraes, de afastar o deputado das prerrogativas da imunidade parlamentar. “A questão toda orbita em cima da imunidade parlamentar. O artigo 53 diz que os deputados e senadores são invioláveis civil e criminalmente por quaisquer opiniões, palavras e votos. Ainda que o Daniel Silveira tenha se excedido em sua fala – e isso é indiscutível, ele próprio confessou ter se excedido –, não poderia de forma nenhuma ter sua conduta criminalizada, como vem fazendo o Supremo”, afirma o advogado criminalista.

Para Nunes Júnior, caso o ministro tenha se sentido ofendido com as declarações de Silveira, o caminho correto seria entrar com um processo por crime contra a honra. “Agora, no caso do ministro, não existe uma base legal para amparar essas decisões. Ele criou uma ficção jurídica para poder justificar a decisão do Daniel de não se submeter à tornozeleira”.

Por fim, conforme apontam os juristas, a determinação de medidas cautelares que restringem o direito de comunicação impostas pelo ministro – como proibição de fazer publicações nas redes sociais e conceder entrevistas – também ferem os artigos 5º, 53 e 220 da Constituição Federal, que abordam, respectivamente, a liberdade de expressão, a imunidade parlamentar e a liberdade de informação, e constituem censura prévia.

“O processo contra o deputado Daniel Silveira tem sido tratado, basicamente, como uma vingança pessoal, em virtude das ofensas de cunho pessoal proferidas contra os ministros. O fato é que a fala do deputado, embora reprovável, do ponto de vista penal é quase irrelevante, visto que o ilícito consistiu essencialmente em agressões à honra subjetiva e objetiva dos ministros, e delitos contra a honra comportam tratamento penal bastante benigno”, explica Uliano.

“Como os ministros pretendem atingir consequências incompatíveis com um delito dessa natureza – o qual nem seria punível, pois estaria acobertado pela imunidade –, forçaram um enquadramento inadequado e passaram a impor uma série de medidas desproporcionais e descabidas”, complementa.


Gabriel Sestrem, Gazeta do Povo