segunda-feira, 14 de março de 2022

Al Pacino sobre 'O Poderoso Chefão': ''Levei uma vida inteira para aceitar'

 Ator lembra encontro com o diretor Francis Ford Coppola e reflete sobre o peso de Michael Corleone em sua vida


É difícil imaginar "O Poderoso Chefão" sem Al Pacino. Sua atuação contida no papel de Michael Corleone, que se tornou um herói de guerra respeitável apesar de sua família corrupta, passa quase despercebida na primeira hora do filme —até que ele finalmente se afirma e gradualmente vai assumindo controle da operação criminal dos Corleone, além do próprio filme.

Mas tampouco haveria Al Pacino sem "O Poderoso Chefão". O ator era um astro em ascensão do teatro nova-iorquino e tinha apenas um papel no cinema em seu currículo —no drama sobre drogas "Os Viciados" de 1971— quando Francis Ford Coppola contrariou a vontade da Paramount Pictures para chamá-lo para o papel do príncipe reflexivo de seu épico sobre a Máfia. Depois disso houve mais de meio século de papéis cruciais no cinema, incluindo outros dois filmes em que ele foi Michael Corleone, "O Poderoso Chefão 2" e "O Poderoso Chefão 3".


Al Pacino em cena do filme 'O Poderoso Chefão' - Divulgação

"O Poderoso Chefão" estreou em Nova York em 15 de março de 1972, e hoje, 50 anos mais tarde, podemos imaginar todas as razões que Pacino teria para não querer mais falar disso.

Talvez ele ficasse constrangido ou aborrecido pelo fato de essa única atuação, logo no início de sua carreira no cinema, ainda dominar seu currículo. Talvez ele já tenha dito tudo o que há para dizer sobre o assunto.

Mas em entrevista telefônica no mês passado, Pacino, que está com 81 anos, se mostrou filosófico e até um pouco saudoso ao falar do filme. Ele ainda é admirador ardente dele e de tudo que Coppola e seus colegas de elenco fizeram para apoiá-lo. Ainda se espanta ao constatar como "O Poderoso Chefão", sozinho, fez sua carreira.

"Estou aqui porque fiz ‘Chefão’", disse Pacino, falando de sua casa em Los Angeles. "Para um ator, é como ganhar na loteria. No fundo, não tive nada a ver com o filme a não ser representar o papel."

Segundo recordou Coppola, Al Pacino foi a pessoa que ele viu encarnando o papel desde o começo, um candidato pelo qual valeu a pena brigar, independentemente de seu currículo escasso.

"Quando li o livro ‘O Poderoso Chefão’, fiquei imaginando Pacino no papel", disse Coppola em entrevista separada. "Eu não tinha uma segunda opção. Para mim sempre teve que ser Al Pacino. Foi por isso que fiz tanta questão de que ele fizesse Michael. Esse era o meu problema."

Mas para o ator, a grande atuação de sua vida também foi um fardo, como ele descobriria nos anos seguintes.

"É difícil explicar no mundo de hoje —explicar quem eu era naquela época e como aquilo foi como um raio que caiu do céu", disse Pacino. "Me senti como se de repente um véu tivesse sido levantado, e todos os olhos estivessem voltados para mim. Claro que havia outros no filme. Mas ‘O Poderoso Chefão’ me deu uma nova identidade com a qual tive dificuldade de lidar."

Pacino falou mais sobre como foi ser contratado para fazer "O Poderoso Chefão", como foi fazer o filme, o peso do legado do papel e por que ele nunca mais representou outro personagem como Michael Corleone. Seguem trechos editados de nossa conversa.

Quando você recebe uma ligação pedindo que você fale sobre "O Poderoso Chefão", há alguma parte sua que pensa "sério, de novo? Isso não fica cansativo nunca?" Na realidade, não. Já prevejo isso. Prevejo falar sobre o que funcionou e o que não. Tenho a sensação de que alguém vai me criticar. Só penso: tudo bem, já estive nesse lugar, já fiz isso antes. Mas é bacana. É melhor do que falar comigo mesmo sobre o assunto.

Como surgiu o papel de Michael Corleone? Naquele momento da minha vida, não tive escolha. Francis queria que eu fizesse o personagem. Eu tinha feito um filme apenas. E não estava tão interessado em fazer cinema quanto ficaria depois. Minha cabeça estava em outro lugar. Me senti deslocado nos primeiros filmes que fiz. Me recordo de dizer a meu amigo Charlie [seu mentor, o professor de teatro Charlie Laughton]: falam tanto que o cinema é real, mas não é. Por que há fios ligados a você em todo lugar. Além do mais, você tem que refazer! Você faz a cena e eles dizem, ok, vá lá, faça de novo. É real e não é real ao mesmo tempo. Não é tão fácil se acostumar com isso.

Quando você e Coppola se conheceram? Para contar um pouco da história por trás de tudo, Francis era esse cineasta que tinha a Zoetrope [sua produtora, a American Zoetrope], e pessoas como Steven Spielberg, George Lucas, [Martin] Scorsese e [Brian] De Palma faziam parte de um grupo. Me lembro de ter visto alguns deles quando Francis me pediu para vir a São Francisco depois de me ver numa peça na Broadway. Você já conhece essa história? Estou contando histórias antigas agora.

Tudo bem, é para isso que estamos aqui. Ele me viu no palco [na produção de "Does a Tiger Wear a Necktie?", algo como um tigre usa gravata?, na Broadway, em 1969], mas eu não o conhecia pessoalmente. Ele já tinha escrito "Patton" na época e me enviou o roteiro de uma história de amor muito bela que escreveu [que nunca chegou a ser produzida]. Queria me ver. Isso queria dizer que eu tinha que embarcar num avião e ir a São Francisco, e eu não estava acostumado com isso. Pensei —será que há um outro jeito de ir? Não posso falar para este cara vir até aqui me ver, será que posso? Então resolvi encarar o desafio e fui. Passei cinco dias com ele. O filme realmente era especial. Mas fomos rejeitados, é claro. Eu era um ator desconhecido e ele já fizera alguns filmes, "Agora Você É Um Homem" e "Caminhos Mal Traçados". Então voltei para casa e não tive mais notícias dele.

Mas acabou tendo, não? Quando foi isso? "Os Viciados" ainda não havia saído. E recebi uma ligação de Francis Coppola —um nome do passado. Primeiro ele diz que vai dirigir "O Poderoso Chefão". Pensei, bem, talvez ele esteja passando por um pequeno colapso nervoso ou algo assim. Como foi que entregaram "O Poderoso Chefão" a ele?

Você não achou possível que ele fosse fazer o filme? Preciso explicar. "O Poderoso Chefão" já era um projeto grande. Era um livro importante. Quando você é ator, nem sequer chega a pôr os olhos nessas coisas. Elas não existem para você. Você está em determinado ponto da vida quando não será aceito nesses filmes grandes —ainda não, pelo menos. E ele disse que não apenas ia dirigir o filme como também [começa a gargalhar] queria que eu fizesse. Desculpe, não foi minha intenção dar risada. É que simplesmente pareceu tão absurdo. Lá estava eu, falando com alguém que eu imaginava que devia estar meio maluco. Falei: qual trem devo pegar? Achei melhor fazer de conta que estava acreditando no cara. E ele queria que eu fizesse Michael. Pensei: "ok, vou dizer que topo". Falei: "ok, Francis, ótimo". Sabe como as pessoas falam com você quando você está perdendo o juízo? Dizem "sim, é claro! sim! sim!". Mas ele não estava perdendo o juízo. Era a verdade. E me deram o papel.

Todo o mundo sabe que a Paramount não queria que você fizesse o papel. Ela rejeitou o elenco inteiro dele! [ri]. A Paramount rejeitou Brando, rejeitou Jimmy Caan e Bob Duvall. Houve divergências.

Assisti recentemente a alguns dos testes que você fez para "O Poderoso Chefão". Você está com expressão de desânimo quando te pedem para refazer a cena várias vezes. Verdade. Sempre tive essa expressão. Era uma fachada que me ajudou a suportar aqueles testes. Porque havia grandes atores fazendo testes para o filme. Mas eis o segredo: por algum motivo, ele [Coppola] me queria, e eu sabia disso. Dava para sentir. E não há nada igual a isso, a quando um diretor quer você. É a melhor coisa para um ator, realmente.

Você não era exatamente um João Ninguém. Já tinha ganho um prêmio Tony. Ah sim, na ilha de Manhattan as coisas estavam dando certo para mim. Eu tinha feito "The Indian Wants the Bronx". Era jovem. Recebi o prêmio Obie e depois um Tony. Depois me despediram de uma peça.

Qual peça? Me despediram de uma peça qualquer. Me mandaram embora, digamos assim. Você é o protagonista, mas estamos te mandando embora. É para você ver o quanto está ruim nesse papel. Portanto, eu já era conhecido em algumas áreas. Eu não estava exatamente procurando trabalho, nesse sentido —estava me engajando nas coisas.

Quando você entrou para as filmagens de "O Poderoso Chefão", trabalhando ao lado de gente como Caan e Duvall, que tinham bastante experiência de cinema, e Marlon Brando, a quem admirava muito, como fez para se afirmar, para se destacar no meio deles? Refleti sobre o papel. Eu só não conseguia verbalizar isso na época. Hoje, eu conseguiria verbalizar. Pensei que aquele era um personagem que poderia ser muito forte se saísse do nada, de lugar algum. Era essa minha visão do personagem. Naturalmente, não podia mencionar isso a ninguém, mesmo porque eu não sabia como articular. Mas podia pensar. E quando li o roteiro, senti como estivesse tudo mapeado para mim.

Como assim? Ele não aparece muito. Está ali, mas não chega a aparecer. Acho que foi muito um processo de ir crescendo até aquele discurso em que ele diz que vai pegar aqueles caras [o chefão do tráfico Sollozzo e o policial corrupto Captain McCluskey], e todo o mundo começa a rir dele.

Ou seja, Michael estava sendo subestimado, e isso era algo com o qual você podia se identificar e utilizar para te ajudar? Exatamente. Mas tenho que dizer: eles não poderiam ter me dado mais apoio, todos eles. Eu era jovem, era desconhecido, e eles eram tão reconfortantes. Havia uma espécie de amor ali. Eles entendiam, especialmente Brando. Mas os outros também. Estavam se tornando aqueles irmãos mais velhos e conselheiros que representam no filme. Esses tipos de emoções e cores emanavam deles, tanto na atuação, mas também na vida. As duas coisas se fundem.

Houve algum momento enquanto vocês estavam fazendo "O Poderoso Chefão" em que você percebeu que o filme seria tão grande quanto é? Lembra aquela cena do funeral de Marlon, quando o colocam no chão? As filmagens tinham acabado naquele dia —o sol já estava se pondo. Então eu estava feliz, é claro, porque podia ir para casa e tomar uns goles. Eu estava indo para meu trailer, pensando "eu estava bem hoje, não tive diálogos para decorar, não tive obrigações, estava ótimo". Cada dia sem diálogos a decorar é um bom dia. Então eu estava voltando para meu trailer. E dei de cara com Francis Ford Coppola sentado sobre um túmulo, chorando como um bebê. Chorando copiosamente. Fui até ele e perguntei: qual é o problema, Francis, o que aconteceu? E ele diz "não vão me deixar fazer outra tomada". Ou seja, não iam deixá-lo refilmar a cena. Pensei: acho que estou num filme bom. Porque ele tinha aquela paixão pelo filme. Era isso.

Você voltou a ver o filme recentemente? Não. Posso ter assistido de novo uns dois ou três anos atrás. É o tipo de filme que quando você começa a assistir, continua.

Você fica constrangido quando assiste aos filmes nos quais trabalhou? Não. Curto ver filmes nos quais estive. Às vezes mostro a outras pessoas. Digo: "Ei, venha ver! É aqui! Sou eu! Dá uma olhada nisso". Bom, não chego a tanto. Mas chegaria, se pudesse. Acho que "O Poderoso Chefão" faz sucesso com qualquer público. Mas me surpreendo quando percebo quantas pessoas nunca assistiram.

Você tem encontrado pessoas que têm consciência de "O Poderoso Chefão" como fenômeno cultural mas que não chegaram a assistir ao filme? Elas já ouviram falar. Isso a gente percebe. "Oh, sim, ouvi falar —você trabalhou nisso? Foi um filme, certo?". Certo. "Cidadão Kane" também foi, aliás. Também trabalhei nesse. Por que não? Elas não sabem.

Há alguma coisa em sua atuação que você, vendo hoje, gostaria de poder mudar? Talvez eu tenha sido poupado. É como quando perdi minha carteira certa vez quando tinha 20 e poucos anos. Não tinha dinheiro, mas o pouco que tinha estava na carteira, e eu a perdi. Falei a mim mesmo, Al, você tem que esquecer. Tire isso da cabeça. Você sabe o que vai acontecer se ficar remoendo isso. Então o que faço é não pensar nisso.

Quem no filme não recebeu reconhecimento suficiente por sua contribuição? John Cazale, de modo geral, foi um dos grandes atores do nosso tempo —daquele tempo, de qualquer tempo. Aprendi muitíssimo com ele. Eu já tinha feito muito teatro e três filmes com ele. Ele era inspirador, simplesmente. E não era reconhecido por nada disso. Trabalhou em cinco filmes, todos indicados ao Oscar, e foi fantástico em todos. Ele foi especialmente bom em "Chefão 2", e acho que não recebeu o reconhecimento que merecia.

Há algo de intensamente contido no modo como você representa Michael em "O Poderoso Chefão" que acho que nunca voltei a ver em nenhum de seus outros trabalhos no cinema, nem sequer nas outras vezes em que encarnou o personagem. Foi uma parte de você mesmo que desapareceu, ou foi simplesmente a natureza do personagem que o exigiu? Eu gostaria de pensar que foi a natureza daquela pessoa particular e daquela interpretação. Não consigo pensar em nenhum outro personagem que fiz que pudesse ter utilizado esse tipo de contexto. Eu era um ator jovem —bem, em "O Poderoso Chefão 3" eu já não era jovem, mas isso não é culpa minha.

Mas em comparação com outros personagens aos quais você também é estreitamente ligado, como Tony Montana em "Scarface". Aquele personagem, Tony Montana, foi escrito por Oliver Stone e dirigido por Brian De Palma, que queria a realidade intensificada. Brian queria fazer uma ópera. Tudo o que eu queria fazer era imitar Paul Muni. [ri] Mas se comparo "Um Dia de Cão" com "O Poderoso Chefão" ou "Serpico", não vejo semelhança. Você diria que Michael é mais introspectivo? É o que eu diria. E não sei de nenhum outro personagem introspectivo que eu tenha feito. Mas se eu me sentar com você e repassar o catálogo todo, vamos encontrar alguma coisa.

Você recebeu sua primeira indicação a Oscar por "O Poderoso Chefão", mas não compareceu à cerimônia naquele ano. Estava protestando por ter sido indicado como ator coadjuvante, não como protagonista? De maneira alguma. Eu estava naquela fase da vida em que era um tanto rebelde. Voltei a assistir à cerimônia em outros anos. Mas não ia no começo. Era a tradição. Acho que Bob [Robert de Niro] não foi ao Oscar. Nem sequer George C. Scott foi. Tiveram que acordá-lo. Marlon não foi. Aliás, Marlon devolveu o Oscar. Que tal isso? Eles estavam se rebelando contra aquela coisa de Hollywood. Esse tipo de coisa estava no ar.

Então tudo isso estava contribuindo para o que você sentia na época em relação à sua fama crescente? Eu estava um pouco incomodado por estar naquela situação, estar naquele mundo. E também estava trabalhando no teatro na época, em Boston [em "Ricardo 3º".] Mas isso era apenas uma desculpa. Tive medo de ir. Eu era jovem, mais jovem ainda do que minha idade real. Era jovem em termos de tudo aquilo ser muito novo para mim. Era aquela velha síndrome de sentir que você saiu do nada. Está ligado a drogas e coisas desse tipo, com as quais eu estava envolvido na época, acho que isso teve muito a ver com eu não ter ido. Eu simplesmente não tinha consciência das coisas naquela época.

Quando você de fato recebeu um Oscar, por "Perfume de Mulher", em seu íntimo ainda sentiu que gostaria de ter recebido pelo papel de Michael Corleone? De jeito nenhum. Se penso nisso hoje, posso dizer: "Claro, eu devia ter ganho. Eu teria três Oscar. Seria como os grandes nomes". Não, não penso nisso. É uma coisa séria. Você está sendo reconhecido por alguma coisa.

Então você ficar à vontade agora com os elogios que recebeu e continua a receber por sua atuação em "O Poderoso Chefão"? Sem dúvida. Sinto-me profundamente honrado com isso. Realmente. Foi um trabalho no qual tive muita sorte de participar. Mas levei uma vida inteira para aceitar isso e seguir em frente. Não é como se eu tivesse representado o Super-Homem.

Você tem algum tipo de critério que utiliza para fazer um ranking de seus próprios filmes? Acho que são os filmes que eu mesmo faço, os que dirigi e escrevi, nenhum dos quais acho que alguém viu, como "Ricardo III — Um Ensaio" ou "Salomé", com Jessica Chastain —mas estou falando de mim mesmo. Eu devia estar falando de "O Poderoso Chefão". Não sei por que me preocupo comigo mesmo. Não conheço mais ninguém. Alguém me telefonou e disse: "você deve estar sozinho". Falei: "não, estou aqui com meu ego".

Tradução de Clara Allain

Dave Itzkoff, The New York Times