sexta-feira, 22 de outubro de 2021

'O dilema do uso legítimo da força', por Alex Fiúza de Mello

 

Não por acaso Nicolau Maquiavel, em seu famoso clássico O Príncipe (1513), já arguia, no alvorecer da modernidade e da formação dos primeiros Estados nacionais em solo europeu, à luz de seu característico realismo analítico, que, ao governante (estadista), em situações de dúvida (impostas pelas circunstâncias) quanto a ser amado ou temido, na impossibilidade de manter ambas as condições, é sempre preferível a segunda opção.

Não existe ordem social ou regime político, na história, independentemente de sua natureza e feitio, que não esteja assentada(o) no uso efetivo ou potencial (sempre que necessário) dos atributos coercitivos.

Das ditaduras às democracias, dos impérios às repúblicas – ainda que por razões e motivações distintas –, nenhum ordenamento, nenhuma governabilidade, nenhum comando político é exequível ou sustentável no tempo sem um arsenal bélico de retaguarda, em permanente prontidão.

Não há legalidade possível (estado de direito) sem o lastro da força. Tampouco legitimidade fluida no exercício do poder sem a sua garantia.

E se tal premissa tem o calibre e a incidência de um autêntico axioma, isso vale também – e sobretudo – para a democracia – cuja vigência franca e alargada das liberdades e dos direitos individuais e coletivos, sempre passíveis de rapto e profanação, importa em contínua vigília e máxima proteção.

Numa democracia, o uso legítimo da força deve ser invariavelmente acionado em três situações limite, em nome da salvaguarda da normalidade e do bem comum:

(a) ameaça à ordem social (atos de violência, terrorismo, anarquia generalizada);
(b) afronta e/ou usurpação de prerrogativas entre os Poderes constitucionalmente constituídos (crise política com impasse institucional);
(c) ruptura com o estado democrático de direito por parte de forças políticas e/ou de autoridades constituídas, com ausência de reação institucional tempestiva e corretiva adequada (tentativas irrefreadas de golpes de Estado; institucionalização licenciosa da criminalidade; descumprimento abusivo dos preceitos constitucionais).

São todas situações ou cenários de suprema gravidade que, uma vez instalados e consolidados, conduzem, inexoravelmente, a sociedade ao caos e à barbárie, com desfazimento do pacto social de origem – salvo por uma intervenção extraordinária de força para recomposição do tecido político esgarçado.

Em todas as constituições republicano-democráticas contemporâneas, a exemplo da brasileira de 1988, está previsto, de maneira explícita (no caso, nos artigos 142 e 143), o papel das Forças Armadas (FFAA) dentro da ordem legal, particularmente no que concerne à sua atuação em contextos específicos de deterioração político-social extrema.

Cabe, assim, às FFAA, por dever de função, uma vez fracassados (ou fraudados) todos os convenientes e ordinários mecanismos de defesa da ordem constitucional (aqui computados uma eventual omissão e/ou permissivismo de uma Corte Suprema), a garantia, ultima ratio, do cumprimento do pacto social contra todos os seus oportunistas e ladinos estelionatários de ocasião, inclusive eventuais usurpadores de paletó e gravata ou casuísticos hermeneutas de toga – investidos de autoridade, tão somente, para honrar e cumprir a Lei e não para raptar, ilegitimamente, o seu espírito e significado, com inversão arbitrária e ilícita de seus propósitos e determinações.

Quando as instituições democráticas são permeadas por impostores, corruptos e pilantras, de notório comportamento delitoso – como no caso brasileiro –, gera-se, inevitavelmente, um temerário impasse institucional e, por consequência, uma grave e aguda crise política, à medida que tais espaços decisórios passam a ser instrumentalizados por esses agentes em benefício próprio e de suas correspondentes facções criminosas – que se movem, ademais (com a cumplicidade da militância midiática), no intuito de convencer a sociedade de que a ameaça “antidemocrática” provém de seus críticos e não de suas próprias entranhas.

Sim, o Brasil se encontra no limiar de uma dramática e alarmante encruzilhada. A permanecer o avanço despudorado do arbítrio e da criminalidade oficializada – como ocorre no presente –, absolutamente impermeável aos apelos populares (como já ficou demonstrado inúmeras vezes) e irrefreável em sua pervertida e impudica sanha, o país caminhará, inevitavelmente, para um gravíssimo e insolúvel impasse institucional, com devastadoras (e imprevisíveis) consequências econômicas, políticas e sociais.

Nessa guerra em movimento, ora se expurga, imediatamente, enquanto há tempo, o “mal” em propagação – preferencialmente por uma reação interna e tempestiva de parcela significativa dos integrantes das próprias instituições em suspeição –, ora todo o organismo político nacional restará condenado, sem alternativa, à ditadura totalitária da voraz e impiedosa cleptocracia oligárquica – no momento em plena reação –, com o sepultamento terminativo da democracia e da república em território tupiniquim.

Tal angustiante cenário, em consumação no país, permeado de múltiplas tentativas de golpe de Estado abertamente em marcha (imposição de relatório faccioso da “CPI do Circo” para fins de condenação arbitrária do presidente; cassação da atual chapa presidencial com base em denúncias sem provas junto ao TSE; ameaça de fraude eleitoral por sistema eletrônico sem apuração auditável, etc.), acabará forçando as Forças Armadas – a despeito das críticas maliciosas e espetaculosas em contrário – a entrar em campo, a fim de cumprirem o seu papel cívico de salvaguarda postimeira da ordem constitucional – o que não é, em princípio, desejável.

O que não se pode, contudo, em contraposição, numa paralisia contraproducente, é consentir que uma bandidagem de contexto, desmoralizada, travestida de simulado “progressismo” ou de falso “democratismo”, arrogue-se o condão de deslegitimar o uso da força quando acionada, exclusivamente, em defesa da normalidade democrática e do estado de direito, surrupiados justamente por quem, matreiramente, por meio de suas condutas e posicionamentos, sistematicamente se lhes opõe.

Neste caso extremo, provocado pelos próprios raptores do estado de direito, tal ação, se viesse a se consumar, não implicaria em tomada do poder (como em 1964), conquanto que, tão somente, numa “intervenção cirúrgica”, por convocação legal, para extirpação dos tumores que ameaçam de morte o tecido social e a democracia constitucional, com normalização, dentro das regras – após o organismo saneado –, do exercício legítimo do poder por quem de direito, para fins exclusivamente republicanos.

A pretensa tese da absoluta passividade das FFAA sob qualquer hipótese – que não deve ser confundida com “neutralidade” –, mesmo em situações extremas de ameaça real ao ordenamento republicano, não passa de arguição propositalmente manipulada por ideológicos e ardilosos autores, usualmente assíduos (e velados) algozes da própria democracia, contra a qual conspiram, diuturnamente, aproveitando-se de suas liberdades e franquias para promover, metodicamente, na exata medida inversa, o seu malogro e destruição.

Se, por um lado, não é papel das FFAA assumir o poder de Estado e substituir-se, indevidamente, aos representantes diretamente eleitos pelo povo (como sucedeu durante o regime militar), por outro não se lhe pode pretender absoluta omissão em meio a tão evidente clima de guerra frontal e declarada, como o atual, radicado na interferência direta e desviante do crime organizado (narcotráfico internacional) nos aparelhos de Estado (Congresso, Judiciário, etc.) e nos destinos do país, com relegação da sociedade à própria sorte e à condição de refém desprotegida de seus ocasionais e arrivistas salteadores.

A propósito de delicado (e polêmico) tema, também já destacara Maquiavel, há mais de 500 anos: o uso da força é, sim, cabível e aconselhável quando já não há, no horizonte, para os fins (nobres) aspirados, outra qualquer saída ou solução dentre os contrapesos pacíficos e diplomáticos disponíveis no campo da ação política, por absoluta inanição de quem deveria, por encargo, acioná-los.

Eis nua e crua (sem rodeios ou sofismas), a questão, em seu inerente e espinhoso dilema. É só reler O Príncipe e confirmar!

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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