sexta-feira, 22 de outubro de 2021

'O saneamento que deveria ser básico', por Edilson Salgueiro

 

Esgoto a céu aberto no Morro da maré, no Rio | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil


Um ano depois da aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento, o Brasil ainda engatinha na universalização de serviços básicos


Há mais de uma década, o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário são direitos humanos fundamentais, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Isso significa que os países signatários se comprometeram formalmente a assegurar esse direito por meio de lei. No papel, o Brasil seguiu à risca a recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas a realidade é bem diferente.

Segundo um levantamento realizado neste ano pelo Instituto Trata Brasil, principal referência na área, mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável — número equivalente a toda população do Canadá ou do Peru. E 46% não dispõem dos serviços de coleta de esgoto. Além disso, pouco mais de um terço das pessoas desfruta de esgoto tratado — praticamente um luxo no país.

A situação não melhora quando o assunto é coleta de lixo. De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), dos quase 6.000 municípios existentes no país, menos de 500 oferecem 100% de cobertura de coleta domiciliar para toda a população — rural e urbana. Há no Brasil mais de 2.600 lixões a céu aberto, 1.180 aterros e 1.100 unidades de triagem (local onde os resíduos sólidos são separados para ser reciclados).

A caótica Belém

Belém, capital do Pará, é uma das cidades que mais sofrem com essa realidade. Segundo dados do SNIS, apenas 15% dos belenenses têm coleta de esgoto, enquanto menos de 3% dos esgotos da cidade são tratados. Esses índices fazem de Belém a quarta cidade brasileira mais distante da universalização do saneamento, conforme o Ranking do Saneamento Básicolançado no ano passado. Apenas São João do Meriti (RJ), Ananindeua (PA), Porto Velho (RO) e Macapá (AP) apresentam situações mais precárias.

“Ver cidades desse porte com indicadores baixos em saneamento é ruim, mas quando temos capitais como Macapá, Porto Velho, Belém e Rio Branco nas últimas posições, o cenário é muito pior, pois são referências em seus Estados”, avalia Édison Carlos, químico industrial e presidente-executivo do Instituto Trata Brasil. “Vimos com preocupação que os municípios mais bem posicionados se mantêm entre os que mais investem, enquanto as cidades que mais precisam evoluir persistem com baixos investimentos em água e esgoto. Se nada mudar, teremos dois ‘Brasis’: o que tem saneamento e o que não tem.”

O novo marco legal

Os brasileiros não contemplados por esses serviços fundamentais receberam uma dose de esperança no ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro sancionou o Novo Marco Legal do Saneamento. O principal objetivo é promover a universalização dos serviços, garantindo que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e à coleta de esgoto — tudo isso até dezembro de 2033. Para suprir as necessidades de tantas pessoas, o governo pretende atrair de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões em investimentos.

Uma das principais novidades da lei é a extinção do modelo de contratação de serviços adotado anteriormente por municípios e companhias estaduais de água e esgoto. Pela antiga legislação, as prefeituras e os Estados negociavam exclusivamente com as empresas públicas ou de economia mista (parte públicas, parte privadas) por meio dos chamados contratos de programa, que impediam a concorrência da iniciativa privada.

Atualmente, a iniciativa privada corresponde a um terço dos investimentos em saneamento

O novo marco legal muda a dinâmica do setor, uma vez que estimula a livre concorrência, a sustentabilidade econômica e a eficiência na prestação de serviços, tornando obrigatória a abertura de licitação. Pelas novas regras, tanto as companhias públicas quanto privadas poderão participar dos processos licitatórios.

Piracicaba, a vanguarda

A cidade de Piracicaba, no interior de São Paulo, tornou-se um exemplo bem-sucedido depois de firmar uma parceria público-privada com a Aegea, uma das maiores empresas do setor. “Desde os anos 1970, vínhamos aprimorando o tratamento de água, com a criação de estações, mas faltavam recursos para os serviços de esgoto”, disse José Rubens Françoso, ex-presidente do Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae) de Piracicaba, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Com a parceria, houve meios de estruturar melhor essa rede.”

Nesse modelo de prestação de serviços, a iniciativa privada investe em infraestrutura e capacidade operacional, enquanto a prefeitura focaliza no atendimento à população, na fiscalização dos serviços e na administração das contas. Como resultado, Piracicaba figura entre as seis primeiras colocadas tanto no Ranking do Saneamento Básico, realizado anualmente pelo Instituto Trata Brasil, quanto na listagem organizada pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). “Não há segredo, é investimento”, afirma Édison Carlos, ao ressaltar que as cidades mais bem posicionadas nos rankings nacionais investem há décadas em saneamento.

O novo marco legal um ano depois

Atualmente, a iniciativa privada corresponde a um terço dos investimentos em saneamento, segundo a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) e o Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon). As empresas atendem de forma plena ou parcial, em cada cidade brasileira, 15% da população. São cerca de 32 milhões de pessoas, presentes em 7% dos municípios. Em 2019, foram aplicados R$ 4,8 bilhões pelas empresas privadas, diante de um investimento total de R$ 14,8 bilhões.

Se forem considerados os recentes leilões das companhias Casal (AL), Sanesul (MS), Cedae (RJ) e Cariacica (ES), as operadoras privadas passam a atender direta ou indiretamente 17% da população, e a expectativa é que atinjam ao menos 40% dos brasileiros até 2030. As empresas privadas têm 191 contratos firmados, que vão desde a modalidade de concessões plenas e parciais até parcerias público-privadas. Juntas, as companhias atendem 392 cidades, das quais 42% são consideradas pequenos municípios, com até 20 mil habitantes. Outros 22% são formados por municípios na faixa de 20 mil a 50 mil habitantes.

A evolução dos indicadores de cobertura dos serviços de saneamento é pouco expressiva e reflete a escassez de investimentos no setor nos últimos anos. Entre 2015 e 2019, houve regressão no índice de atendimento de água em áreas urbanas — atingia 93% em 2015 e caiu para 92,95% em 2019. O índice de esgoto tratado, por sua vez, registrou melhora — 43% em 2015, passando a 49% em 2019.

“Os dados operacionais, como metas de atendimento, despesas, perdas e investimentos, ainda não refletem o Novo Marco Legal do Saneamento, visto que as primeiras concessões estão entrando em operação agora”, informou em nota o Ministério da Economia. “Porém, os resultados dos leilões são um excelente indicador das expectativas de sucesso.”

Para que o país atinja a universalização dos serviços de saneamento, com 99% de água potável e 90% de esgoto coletado e tratado, o total de investimento previsto para os próximos 12 anos é de mais de R$ 750 bilhões. Desse valor, R$ 255 bilhões são referentes à recuperação das redes de tratamento. Se a meta for alcançada, o Brasil reduzirá em até R$ 1,45 bilhão os custos anuais com saúde, segundo dados da CNI.

De acordo com a Abcon e o Sindcon, os investimentos na expansão das redes de abastecimento de água e esgotamento sanitário movimentariam R$ 1,4 trilhão na economia, com a geração de mais de 14 milhões de empregos ao longo do período dos investimentos e quase R$ 90 bilhões em arrecadação tributária.

Longo caminho pela frente

A nova lei abriu espaço para a iniciativa privada ampliar sua participação no setor de saneamento básico no Brasil. Com as regras atuais, as empresas podem prestar seus serviços amparadas por segurança jurídica e estabilidade institucional, condições fundamentais para os investidores alocarem seus recursos. Contudo, a atuação de Estados, municípios e agências reguladoras permanece imprescindível. “O segredo é a regulação e a fiscalização”, diz Édison Carlos.

Os exemplos bem-sucedidos observados em diversos países desenvolvidos mostram que os esforços complementares dos setores público e privado têm mais chances de promover a universalização dos serviços de saneamento básico. A inventividade e a capacidade operacional da iniciativa privada, associadas a regras claras e rígidas estabelecidas por agências reguladoras, apontam a direção para a qual o Brasil deve seguir. Atualmente, o país ocupa uma vergonhosa 103ª posição no ranking mundial de saneamento básico organizado pelo portal IndexMundi.

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Revista Oeste