O 7 de setembro se consumou. Foi uma manifestação jamais vista na história da república! Um momento épico!
O povo, expressamente, país inteiro, ao vivo e a cores, de todas as classes e idades, externalizou para o mundo todo, de forma translúcida e inquestionável, a sua vontade soberana, muito além da expectativa de seus mais otimistas apoiadores e/ou sanhosos antagonistas – inclusive indicando as medidas a serem cumpridas por quem, na condição de delegados eleitos (e, portanto, de subordinados), tem esse dever!
Foi uma demonstração genuinamente democrática, de supremo civismo e autodeterminação popular, pautada no cumprimento, à risca, do célebre axioma cunhado pelo principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, um dos principais ícones do pensamento republicano moderno:
“Quando a injustiça se torna lei, a resistência torna-se um dever”.
A democracia, na sua mais radical e límpida acepção, é exatamente isso: a vontade popular manifesta; o governo direto do povo, sempre que possível – como reza, aliás, o parágrafo único, do artigo primeiro da Constituição de 1988. As instituições são apenas a representação formal e a tradução oficial do estado de direito pactuado, não podendo substituir-se jamais (como pretendem os falsos “iluministas”) ao soberano originário.
Assim posto, ato contínuo à marcante e histórica efeméride, eis que surge a mesma pergunta de cem anos atrás, ironicamente formulada nos dias que se sucederam à eclosão da afamada Revolução Russa, de 1917, tão logo ultimada a derrubada do regime czarista:
O QUE FAZER?
No caso brasileiro, contudo, ao avesso do episódio russo, toda a mobilização nacional se direcionou, justo, contra a ruptura institucional patrocinada pelos arautos da “velha ordem” (com o STF no comando); contra o golpe de Estado, por esses, promulgado; contra o fato de a Constituição e o ordenamento jurídico terem sido, notória e paradoxalmente, rompidos por aqueles que deveriam, na exata medida (inclusive por dever constitucional), ser os seus máximos guardiões.
Ao fim e ao cabo, fato é que se rompeu o Pacto Social, com o retorno, ao menos temporariamente, à situação de vulnerabilidade generalizada que o filósofo contratualista moderno Thomas Hobbes (séc. XVI/XVII) comparou à de um “estado de natureza” – em que a “lei” deixa de ser a razão, para ser a força.
De uma forma ou de outra, a realidade é que, diante de um quadro de ameaça frontal à liberdade e à justiça, não há mais espaço e tempo para titubeios ou postergações: por bem ou por mal (pela força do direito ou pelo direito à força), conforme já autorizado pelo povo – e em vista da recomposição do próprio estado democrático de direito –, “intervenções cirúrgicas” (mesmo que dolorosas) terão de acontecer, incontinenti, no tecido político necrosado, sob pena da instalação, em definitivo, do estado de arbítrio, violência e barbárie – com atingimento irreparável da medula óssea que alimenta todo o organismo social.
O “câncer primário”, como é de conhecimento comum, já está diagnosticado e precisa ser urgentemente extirpado do corpo político letalmente combalido: localiza-se no STF – não a instituição em si (necessária e insubstituível), mas os seus atuais (e patógenos) componentes. Os “tumores secundários”, à sua vez, com suas “células” corrompidas, encontram-se disseminados nos principais órgãos do Congresso Nacional e em outras partes mais tópicas da restante contextura político-institucional – a merecer, igualmente, intervenções cirúrgicas pontuais ou tratamento quimioterápico condizente, conforme o caso.
Não haverá outra oportunidade para tão ansiada (e necessária) profilaxia. Ou se conclui, passo seguinte, a complexa (e inadiável) cirurgia – com bisturi apropriado à retirada das melindrosas “lesões” –, ou a metástase da corrupção e do totalitarismo levará, inevitavelmente, a óbito (e sem redenção futura) o que resta da república e da democracia no Brasil.
O momento propício para se eliminar os principais “nódulos” da maligna oligarquia cleptocrática enraizada no poder, com foco em seus notórios e repulsivos representantes, é agora: ou vai, ou racha!
Se rachar – isto é, se se recuar ou contemporizar diante de velhacos –, tudo estará terminantemente perdido e irremediavelmente desmoralizado: as mobilizações populares (que deixarão de existir), o Presidente da República (que confirmará a suspeita de sua apregoada debilidade) e as Forças Armadas (no que concerne ao seu papel constitucional de agente moderador e garantidor da ordem e do equilíbrio entre os Poderes). Todos, sem exceção, cairão no descrédito duradouro e no limbo da desonra.
O povo, humilhado e traído, recolher-se-á à própria casa, terminando por ficar, daqui em diante (quiçá, pelos próximos cem anos), condenado ao calabouço da apatia volitiva e da passividade servil, à mercê de seus circunstanciais opressores. As fracassadas lideranças, a seu turno, restarão condenadas e judiadas pelos tiranetes de plantão, sem dó, nem piedade. Já o episódio em si, apesar de sua inesquecível e simbólica eloquência, entrará para a história como um retumbante fracasso – uma “aventura” que não teve, à altura, os pretendidos e meritórios protagonistas.
Sim, não se desenha outra alternativa no horizonte: ou se aproveita o auspicioso momento e se instaura, de uma vez por todas, a genuína república e a verdadeira democracia – salvando-se a autoestima popular e a plena liberdade de expressão (com garantias institucionais à realização da vontade soberana por meio do voto impresso e auditável) –, ou tempos tenebrosos se abaterão, inexoravelmente, sobre a sofrida pátria tupiniquim, com a institucionalização inapelável da tirania, do despotismo e da opressão – em que haverá choro e ranger de dentes.
Já dizia o grande democrata e célebre presidente norte-americano, Abraham Lincoln (1861 - 1865), para não deixar nenhuma sombra de dúvida aos seus contemporâneos (e à posteridade) quanto ao fundamento pétreo mais determinante (e pragmático) de toda verdadeira democracia:
“O povo (...) é o senhor legítimo tanto do Congresso, quanto dos Tribunais; não para derrubar a Constituição, mas para derrubar os homens que a pervertem”.
Sim: não há melhor tradução – e explicação – para os últimos acontecimentos e sua justificação. Resta tão somente, agora, a finalização do anunciado desígnio.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
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