quarta-feira, 29 de setembro de 2021

'Linhão de Tucuruí', que corta reserva indígena na Amazônia, tem sinal verde do Ibama

 

Linha de transmissão de energia elétrica na Amazônia: projeto de infraestrutura é um dos mais polêmicos do País. Foto: Ibama - 12/6/2013


Dez anos depois de ter sido leiloado pelo governo federal, o linhão de transmissão de energia previsto para ligar Manaus (AM) a Boa Vista (RR) obteve autorização para ter suas obras iniciadas. O Estadão apurou que a licença de instalação do projeto, documento que autoriza o início efetivo da construção, foi liberada pelo Ibama, após o órgão ambiental receber sinal verde da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre os impactos indígenas do empreendimento. Com a decisão, a concessionária Transnorte Energia, formada pela estatal Eletronorte e a empresa Alupar, poderá dar início imediato à construção, que tem prazo total de 36 meses para ser concluída e início de operação no primeiro semestre de 2024.

Um dos projetos de infraestrutura mais polêmicos do País, o linhão de 720 quilômetros de extensão, também conhecido como “linhão de Tucuruí”, ficou na gaveta do Ministério de Minas e Energia por uma década, depois de ser leiloado em setembro de 2011, ainda no governo Dilma Rousseff. O motivo da paralisação foi o impacto que a linha impõe à terra indígena Waimiri Atroari, onde hoje vivem mais de 2.300 indígenas. Nos últimos anos, o povo Kinja protestou contra a ideia de ver uma rede com 250 torres e centenas de quilômetros de cabos de aço erguida sobre suas terras. A reserva foi conquistada após centenas de mortes serem causadas pelo processo de abertura e construção da BR-174, a estrada aberta pelos militares na década de 1970, para ligar as capitais do Amazonas e Roraima.

Dos 720 km da linha de transmissão, 122 quilômetros passam diretamente no meio de suas terras. Os indígenas não se posicionavam contra a obra de energia, mas exigiam ser consultados. Nestes dez anos, os Kinja cobraram o direito constitucional de serem previamente consultados sobre o empreendimento, pediram informações sobre a possibilidade de a linha ser desviada de suas terras e estudaram os impactos que sofreriam caso não houvesse outra rota.  

Por vários anos, a Funai esteve ao lado do povo indígena na avaliação do projeto, em busca de respostas e estudos técnicos sobre a viabilidade da obra. Na gestão atual do órgão, porém, seu posicionamento se inverteu e a fundação passou a atuar como instrumento de pressão para autorizar o empreendimento. Em postura de afronta ao povo indígena e servidores do próprio órgão, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, chegou a transformar o processo de licenciamento em investigação policial. Em maio, Xavier acionou a Polícia Federal, que abriu inquérito para investigar lideranças indígenas e nove servidores da própria Funai, sob a acusação de que atuariam para colocar supostas “barreiras e entraves à aprovação” do projeto.

Dentro do Ibama, a liberação da obra já era dada como certa, mas o órgão ambiental aguardava o sinal verde da Funai sobre as questões indígenas para seguir adiante com a licença de instalação. O próprio presidente Jair Bolsonaro, bem como o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, tinham prometido que a obra seria liberada ainda em 2019.  

A reportagem conversou com Harilson Araújo, advogado da Associação Comunidade Waimiri Atroari. Ele desconhecia na terça-feira, 28, a autorização para início da obra e afirmou que ainda esperava uma resposta do governo. “Apresentamos uma proposta de compensação das condicionantes do povo Waimiri à Transnorte Energia, mas ainda não tivemos nenhuma confirmação sobre nada. Nosso plano básico ambiental mostra 37 impactos à terra indígena, dos quais 27 são irreversíveis e terão que ser devidamente indenizados e mitigados. Alguns se esgotam, outros são para sempre”, disse. 

Os 2,3 mil indígenas vivem em 82 aldeias distribuídas na região. “Os indígenas não cobram lucro, dinheiro. O que buscam são formas de reduzir impactos e de serem atendidos com programas que passam por segurança, educação, saúde e tecnologia”, afirmou Harilson Araújo.

O representante do povo Kinja não mencionou um valor necessário para financiar as condições levantadas pelos indígenas. Em 2019, quando o assunto ainda estava longe de uma decisão, a Transnorte Energia chegou a apresentar aos indígenas um conjunto de propostas que custariam, no total, R$ 49,6 milhões à empresa, a preços da época. Perguntado se o pleito atual seria de um valor aproximado, Araújo disse que está “muito acima disso”, sem mencionar mais detalhes. “Não falamos sobre valores, mas certamente está bem acima disso, pelo menos dez vezes esse valor.”

Raul Ferreira, diretor técnico da Transnorte Energia, não deu detalhes à reportagem sobre o que foi, finalmente, decidido sobre a demanda dos indígenas. “Tivemos um encontro em agosto e eles apresentaram uma proposta. Vamos assumir aquilo que já tínhamos sinalizado antes. O que passar disso será com o governo federal”, afirmou.

O Ibama e a Funai foram questionados sobre o assunto, mas não se manifestaram. O Ministério de Minas e Energia declarou que, “após aprovação, as obras devem durar cerca de 36 meses”. 

Chama a atenção o fato de que, em qualquer empreendimento, as licenças só são liberadas após esses programas estarem completamente definidos e seus acordos firmados, mas é essa a situação relatada pelo MME. “Os programas ambientais que visam mitigar ou compensar os impactos da passagem da linha de transmissão na terra indígena estão sendo definidos entre técnicos da empresa responsável pelo empreendimento e lideranças indígenas”, declarou o ministério.

Conexão de energia até Roraima

A linha de transmissão foi planejada para conectar Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN) de energia. O Estado é o único que não está integrado ao sistema elétrico do País

Desde março de 2019, o fornecimento de energia de Roraima depende de usinas térmicas movidas a óleo diesel, devido ao fim do contrato que o governo brasileiro mantinha com a Venezuela e a estatal Corpoelec. A empresa atendia cerca de 80% do consumo de energia do Estado. A entrega dessa geração, porém, que sempre foi precária, já estava insustentável, com o agravamento da crise no governo liderado por Nicolás Maduro.

Com o fim do contrato, o volume de combustível queimado para levar luz à população saltou de 103 mil litros por dia para 1,067 milhão de litros diários, mais de dez vezes a quantidade anterior.

André Borges, O Estado de S.Paulo