sábado, 15 de maio de 2021

"O inebriante populismo vacinal", por Leonardo Coutinho

 

Biden recebe vacina contra o vírus chinês - Foto: Divulgação/VOA News


Nesta semana, o Food and Drug Administration (FDA) – o equivalente americano da brasileira Anvisa – liberou a aplicação da vacina produzida pela Pfizer-BioNTech em adolescentes de doze a quinze anos, reduzindo a faixa etária para aplicação do imunizante que até então era de dezesseis anos. A liberação se deu na segunda-feira e na quarta-feira já estava lá a garotada tomando a primeira dose da vacina. Uma extravagância em um país que, até o momento, aplicou mais de 265 milhões de doses – e já tem 36% de sua população completamente imunizada e outros 10% que já tomaram pelo menos a primeira dose. Para os pais que veem seus filhos adolescentes imunizados com a melhor vacina disponível no mercado, em tempo recorde e sem filas é a mais completa tradução de tranquilidade.

Tal qual naquela máxima entre políticos brasileiros que saneamento não garante voto, nos Estados Unidos quase ninguém dá a mínima para saber, entender ou reconhecer como chegamos tão rapidamente às vacinas e porque a população americana está sendo imunizada de forma tão acelerada. A Operação Warp Speed, que injetou bilhões de dólares em pesquisa científica e permitiu às farmacêuticas um ganho de tempo brutal na produção de imunizantes beneficiando não só os americanos, mas todo mundo, virou o cano de esgoto debaixo da terra que deságua em uma estação de tratamento que ninguém presta atenção.

As reações das vacinas vão pouco além das dores no corpo – que para quem já teve dengue fica fácil de entender – e febre. A popularidade do presidente Joe Biden está igual a um foguete. E aqui mora o perigo do populismo vacinal.

Não vejo problema algum em um país que patrocinou o desenvolvimento das vacinas e pagou por elas priorizar sua população. Como dizia Donald Trump. America First! Mas olhando apenas para dentro, Washington dá sinais de que ainda não entendeu que não existe mais liderança natural.

Liderança e influência estão em disputa. E as respostas em relação à pandemia não são diferentes. Em um mundo convulsionado, o que deveria ser inspiração muito facilmente pode se tornar motivo de indignação. Enquanto os Estados Unidos vacinam crianças, idosos morrem em países aliados como Índia e Brasil. A culpa dessas mortes é dos americanos? Claro que não. É dever dos americanos vacinarem essas pessoas? Claro que não. Mas seria minimamente inteligente não focar tanto na política doméstica e olhar para além das urnas e das próprias fronteiras.

Todos os dias, os inimigos dos Estado Unidos reforçam a tese de que os americanos são os egoístas que estão drenando de forma iníqua as vacinas. Yan Wanming, o embaixador brigão que a China plantou no Brasil, não perde a oportunidade para lançar pílulas com a teoria de que os americanos são os egoístas. E realmente está fácil para China emplacar a propaganda de seu altruísmo.

Na Índia não tem sido diferente. As engrenagens de propaganda de Pequim estão azeitadas para convencer os indianos de que os Estados Unidos não são amigos fiéis. É a tal da “diplomacia da vacina”, que também pode ser chamada de “diplomacia da chantagem”. Em que a China tem preferido vender doses de vacinas para consolidar seus interesses estratégicos, forçar decisões em seu favor e avançar casas em um tabuleiro que os seus rivais, os Estados Unidos, perdem a cada movimento uma peça.

Enquanto celebra o sucesso da vacinação, os americanos da Costa Leste estiveram prestes a ter dias venezuelanos por causa da possibilidade real de um colapso do sistema de fornecimento de combustível. Hackers sequestraram os sistemas da empresa que controla os dutos de distribuição de gasolina. Embora um exército de caminhões tanque tenha sido acionado para suprir parte do problema, não existe frota capaz atender à demanda da região mais populosa dos Estados Unidos. A correria aos postos de combustíveis formou filas enormes. O pânico frente ao risco de desabastecimento é muito comum entre os americanos. Mas, no caso dos combustíveis, a ameaça era absolutamente real.

As autoridades americanas conseguiram identificar a origem do ataque. Veio da Rússia. Como por lá Estado e máfias formam um ente híbrido, não se sabe exatamente se o ataque é uma ação de bandidos, do governo ou de ambos. Algo que seria curioso saber, mas que a utilidade é nula. A Rússia moveu uma campanha maciça de desinformação no referendo do Brexit e no da Cataluña. Putin sabotou as campanhas de 2016 e de 2020 nos Estados Unidos. Mas e daí?

O governo russo também foi flagrado fazendo estripulias contra vacinas ocidentais na Europa, para minar a certificação e comprometer a confiabilidade em favor de seu produto nacional, a Sputnik-V. Mas e daí?

Nada.

China e Rússia sabem que podem fazer o que fazem e sair impunes. Alguém realmente acredita que os Estados Unidos, Reino Unido, por exemplo, reagiriam belicamente aos crimes de Pequim e Moscou. Evidentemente que não.

Influência e liderança não são mais naturais. Estão em disputa, como já foi dito aqui. Seja ela disputada por chantagem, comércio, armadilha de dívida e mentiras. A reação passa por estratégias nada convencionais que já deixaram a velha tática das sanções enferrujadas no tempo.

A Federação Internacional dos Jornalistas (IFJ, conforme a sigla em inglês) divulgou um relatório mostrando como a China está literalmente comprando a imprensa em algumas partes do mundo. Uma pena que a IFJ não olhou para o Brasil.

O alistamento de meios de comunicação, acadêmicos, parlamentares e influenciadores pavimenta o caminho das malversações de Estados que não se veem impedidos de se comportar como máfias.

A América se encanta com a sua imagem diante do espelho e parece ter se esquecido de cuidar dela sobre a perspectiva de quem a vê. China e Rússia estão trabalhando muito bem para fazer dos Estados Unidos um conjunto de coisas feias.

Biden está corretíssimo em correr para que os Estados Unidos voltem aos eixos. Mas pode estar errando a mão pelos encantos da popularidade. George W. Bush e Barack Obama viraram as costas para a América Latina abrindo as portas para a China. Donald Trump passou quatro anos fissurado na Venezuela. Biden chegou e parece repetir os erros.

Peço perdão aos leitores que chegaram até aqui. Mas é preciso destacar. Esta coluna não reforça a lorota chinesa de que os Estados Unidos são egoístas, enquanto o Partido Comunista são os abnegados amigos do mundo. Mas a administração Biden está cometendo um erro (e sinceramente não apostaria que Trump faria diferente). Vacinar crianças não fará a economia americana decolar mais rapidamente que limitando doses apenas para pessoas acima de dezesseis anos.

Ampliar o acesso às vacinas para base da enorme pirâmide demográfica americana tem impacto fora. Atrasa a chegada de vacinas em locais como a Índia e o Brasil. E isto não tem nada a ver com egoísmo. É política mesmo. É política ruim.


Gazeta do Povo