sábado, 30 de dezembro de 2017

"Afasta de nós esta Taça!", por Sérgio Magalhães

Com O Globo

Democracia e alta desigualdade não combinam. A grande desigualdade pode levar a radicalismos, ao populismo e dificulta a coesão social


Último sábado, espero que não sejamos surpreendidos ainda neste 2017.

Da corridinha com a mala às malas milionárias baianas, tanta bizarrice se fez presente que as surpresas pareciam esgotadas. Mas não. Ainda teve o novo ministro impondo barganha com o dinheiro das estatais e, sobretodas, o indulto-insulto, com que o presidente presenteia os corruptos e ofende a cidadania.

Contudo, não há que escolher entre indiferença ou ceticismo. Em 2018 temos que acertar o rumo. Vamos acertar o rumo!

Dois importantes estudos acadêmicos foram divulgados há poucos dias. Eles nos ajudam a entender os riscos que nossa democracia corre — e, vendo bem, auxiliam a superá-los.

O primeiro, liderado pelo economista francês Thomas Piketty informa que “o Brasil tem a maior concentração de renda do mundo”, maior até que a dos países do Oriente Médio. O estudo abarca o período 2001-2015, justo aquele onde pensávamos ter sido reduzida a desigualdade.

O segundo estudo é dos pesquisadores Marcelo Medeiros, Pedro de Souza e Fábio de Castro, do Ipea, e avalia que a desigualdade de renda no Brasil tem aumentado desde meados dos anos 1960. Inclusive no período 2006 a 2012.

Ambos os estudos estimam que o 1% mais rico da população concentra entre 25% e 28% da renda nacional. Segundo Medeiros, “Houve melhora para uma grande massa da população. Mas a melhora dos mais ricos foi tão grande que impediu a queda da desigualdade.”

O tema preocupa cientistas políticos. Democracia e alta desigualdade não combinam. A grande desigualdade pode levar a radicalismos, ao populismo e dificulta a coesão social. 

Assim, ante as eleições que se aproximam, convém incluir na agenda política outros desdobramentos do tema que reforçam a desigualdade embora não apareçam nos estudos sobre a renda. A questão urbana é crucial.

“Há um ‘amontoamento’ de vantagens urbanísticas nas áreas onde estão os que podem reivindicar, com a maioria das outras áreas muito mal servidas”, dizia em 1980 o arquiteto e antropólogo carioca Carlos Nelson Ferreira dos Santos, precocemente falecido. (Felizmente tivemos seus escritos reunidos em recente trilogia da EdUFF-CAU RJ, organizada pelas professoras Maria de Lourdes Costa e Maria Laís Pereira da Silva.)

As cidades mostram que desigualdade e política andam juntas. A ação deletéria ou a omissão do Estado comprometem a parca renda dos mais pobres. Vejamos:

- O domínio de áreas populares por milícias ou traficantes impõe sobrepreços no gás engarrafado, na água em galão, em transações imobiliárias, entre outros, com ônus expressivo para os moradores.

- São os mais pobres, usuários majoritários dos ônibus, que custeiam as gratuidades (e as propinas) — não são os mais ricos, que usam veículos particulares. Segundo a ANTT, os governos gastam 14 vezes mais com transporte individual do que com transporte coletivo.

- A falta de transporte de alta capacidade, tipo metrô, acarreta tempo excessivo no deslocamento casa-trabalho, impactando a renda dos mais pobres (que moram mais longe).

- Há um gradiente de escassez de serviços públicos (renda indireta) à medida em que a moradia se afasta dos centros.

Tais exemplos da desigualdade intra-urbana não são medidos nos estudos sobre a desigualdade de renda, onde levantamos a taça de campeões do mundo. Porém, são insumos importantes para o desequilibrio de oportunidades entre os brasileiros, e, de certo modo, para o desencanto com a democracia e o apelo ao radicalismo e ao populismo.

Precisamos saudar os estudos que nos informam sobre a nossa realidade sem viés ideológico, partidário ou de classe. Eles nos ajudam a formular nossas alternativas políticas. E, se quisermos, a afastar aquela vexatória taça.