sábado, 31 de janeiro de 2015

"Lata d’água na cabeça", por Rosiska Darcy de Oliveira

O Globo

Não nos subestimem, aprendemos depressa o que é crise hídrica e volume morto: falta d’água para milhões de brasileiros


Sessenta anos atrás, no carnaval do Rio, o povo cantava a falta d’água. Lá ia Maria que, “lata d’água na cabeça, sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança", Maria que lutava pelo pão de cada dia e sonhava com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia. Hoje, às voltas com a mesma lata d’água, não sei se ela sonha com a vida do asfalto já que, mais de meio século depois, no asfalto também falta água. Sensação de tempo circular, de eterno retorno. Pura sensação. Tudo mudou.

O carnaval chegando, à boca do povo voltam os versos carnavalescos que, na década de 50, contavam o que era o Rio de Janeiro, “cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz". A marchinha mereceu, na época, tradução para o inglês da grande poetisa Elizabeth Bishop, moradora do Rio que estabeleceu com a cidade ambígua relação de amor e ódio, estarrecida com a alegria — ou a leviandade — com que os cariocas cantavam seus males.

Os cariocas mudaram. Mudou o humor. Cenhos franzidos, desgosto, olhares para o céu à cata de nuvens, ninguém está achando graça nesse inferno. Calor sufocante e uma irritação profunda e generalizada ensombrecem os tempos pré-carnavalescos. E abrem alas para quem quer engrossar e pôr na rua o bloco dos descontentes.

Nesse mais de meio século, o Brasil mudou muito e para melhor, a água encanada chegou a tantos lares que é mais difícil hoje aceitar quando a torneira seca. A população já não transforma em sambas seu desgosto. Quer saber o que está acontecendo e os riscos que corre. O ilusionismo das palavras não vivifica a terra crestada no fundo das represas.

Os governantes devem ao país uma informação cristalina sobre o que está se passando e um detalhamento das ações de resposta à crise que não deixem a sensação de que, de novo, há algo escondido. O problema é técnico, de difícil entendimento? Não nos subestimem, aprendemos depressa o que é crise hídrica e volume morto: falta d’água para milhões de brasileiros, para a indústria e agricultura. E a proximidade do fundo do poço.

A política de ocultação que precedeu as eleições, impedindo as medidas preventivas necessárias, erro gravíssimo imputável a gregos e troianos, deu no que deu: agravamento do problema e desgaste da credibilidade de todos. Sem credibilidade, vai ser difícil pedir ajuda à população para diminuir o consumo, dividir com ela as responsabilidades no enfrentamento da crise. Sem a certeza de que os governos estão dizendo, enfim, a verdade, não haverá mobilização nacional. E é certo que ela será incontornável.

O ministro de Minas e Energia apelou para Deus que, segundo ele, é brasileiro. Por pouco não cantou “Alá-lá-ô, ô ô ô, mande água pra ioiô, mande água pra iaiá". Ora, Alá, meu bom Alá, anda às voltas com os horrores e barbáries que se cometem em seu nome e o Deus que nos protege não é só brasileiro. Seu ministro mandachuva, São Pedro, manda chuva também para outros lugares. Brasileiros mesmo, somos nós, e a conversa é conosco.

A crise, real e imediata, tem a virtude de ensinar a milhões de pessoas a responsabilidade pelo seu próprio futuro e a consciência de que viver melhor ou pior é, em boa medida, o resultado de nossas próprias escolhas. As crises são educativas e uma oportunidade para mudança de comportamentos.

Começando pelo comportamento de quem nos governa. É imperativo o entendimento entre a presidente da República e os governadores dos estados atingidos, acima das querelas partidárias. Em tempos de politicalha minúscula e picuinhas, de irresponsabilidade máxima, seria um alívio a união nacional em torno do interesse público, esse que é sempre a última das preocupações da classe política. Melhor seria se, reconhecendo os imensos erros cometidos — mentiras eleitorais, falta de planejamento, incompetência na gestão e atraso tecnológico — fossem os governantes capazes de unir forças para corrigi-los.

Resta o imponderável, a chuva. As florestas amputadas estão cobrando seu preço. A natureza tem história, uma história humana da natureza, e ela sempre acaba por mostrar quem tem a última palavra. No Sul Maravilha brotam angústias nordestinas. O sertão vai virar mar e o mar virar sertão? E se chover pouco ou nada no fim do período de chuvas?

Não adianta mais cantar, como nos carnavais de outrora, "Tomara que chova três dias sem parar". O cerne da questão é que não estamos, como poderia parecer, voltando ao passado. Estamos chegando ao futuro. Apertem os cintos para aterrissar na real. Água será um bem cada vez mais raro no mundo.

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora