segunda-feira, 28 de agosto de 2017

"O mercado da ética crescerá, e juízes e advogados farão rios de dinheiro", por Luiz Felipe Pondé

Ricardo Cammarota/Folhapress
Ricardo Cammarota - Coluna Pondé - Ilustração para edição de segunda-feira, dia 28 de agosto de 2017
Folha de São Paulo


Muito se discute sobre ética nos últimos tempos. Da escola à política, do mundo corporativo à arte. Não pretendo aqui resolver esse debate, mas há uma questão nele que me parece essencial apontar: o futuro da ética é a judicialização da vida. 

A ética "real", pouco a pouco, se torna um "mercado da ética", que enriquece advogados, juízes, procuradores, promotores e "assessores".

Com a modernização, o modo de contenção do comportamento via "pressão local do grupo", cedeu aos vínculos distantes e instrumentais. A vida produtiva moderna, associada à arrancada "progressista" em direção a um mundo redefinido por propostas sociais, políticas e, muitas vezes, psicológicas, arruinaram o valor da tradição moral como contenção de comportamentos.

A própria expressão, tão comum na boca dos jovens, "a moral imposta pela sociedade", sinaliza para a ruína dessa moral, uma vez que é sentida como "imposta". Ou a moral é internalizada ou ela é um nada. Uma "segunda natureza", como diria Aristóteles (384-322 a.C.).

A ideia aristotélica de uma ética prática das virtudes, elegante, mas inviável numa sociedade de vínculos impessoais, distantes e instrumentais, sofre com a indiferença concreta que temos pela opinião dos outros -afora parentes muito importantes pra nós ou pessoas que podem nos causar danos muito imediatos. 

Essa é, exatamente, a "liberdade" sobre a qual tanto se fala que ganhamos com a modernidade: a ilusão de que podemos mandar o mundo pra aquele lugar...

A posição kantiana de imperativos categóricos morais do tipo "aja de modo tal que sua ação possa ser erguida em norma universal de comportamento", na prática, pavimenta a estrada para a judicialização. Basta ver os manuais de "compliance" que florescem pelo mundo corporativo -voltaremos a isso logo.

O utilitarismo e seu império do bem-estar, seguramente, funcionam como "ethos" de um mundo pautado pela busca da felicidade material em todos os níveis, inclusive no da matéria do corpo e sua saúde. O utilitarismo pauta políticas públicas e corporativas, mas não me parece ser ele a base da judicialização. Esta base vem dos imperativos de Immanuel Kant (1724-1804). Vejamos.
Kant percebeu a dissolução dos modos tradicionais de contenção do comportamento em curso em sua época, em finais do século 18.

Tentou encontrar um modo "racional" e, portanto, universal, para a ética. Mas, este modo "deontológico" (dever ser) se revelou não como uma maioridade racional introjetada da norma, como ele pensava, mas sim como o crescimento do aparelho jurídico de constrangimento do comportamento. Dito de forma direta: 

desde manuais de "compliance" contra passivos éticos no mundo corporativo até o aumento da indústria dos processos. Enfim, a judicialização do cotidiano.

Essa judicialização significa que a única forma eficaz de constranger os comportamentos é via a força da lei. Esta é, sempre, encarceramento ou pagamentos de somas financeiras como consequência de processos abertos. Juízes arrancam seu dinheiro num clique. A indústria de sentenças cresce. Como mandamos o mundo pra aquele lugar, resta o mercado da ética.

Este mercado crescerá cada vez mais. Advogados farão rios de dinheiro. A máquina judiciária estatal crescerá junto com isso. Concursos para juízes e para o Ministério Público (cuidando de nós, cidadãos "hipossuficientes") garantirá inúmeras vidas financeiramente.

À medida que a sociedade se torna cada vez mais impessoal (apesar da baboseira de "capitalismo consciente" que falam por aí), a única forma restante será o mercado ético associado à ampliação das vagas no poder Judiciário.

Um dos efeitos nefastos desse mercado é a paranoia que segue toda sociedade judicializada. O medo do risco de ser processado faz o trabalho sujo da prevenção contra o passivo ético que tende a crescer. As empresas serão obrigadas a redefinir suas culturas internas, as escolas a inviabilizar qualquer forma de "sofrimento" dos alunos, enfim, o medo, alimento ancestral da norma, reinará livre sobre os cidadãos "livres" da modernidade tardia.