Stéphanie Habrich veio morar em São Paulo aos 8 anos, quando o pai, executivo da Volkswagen na Alemanha, foi transferido para o Brasil.
Após se formar em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas e começar uma bem-sucedida carreira em banco, ela foi parar em Wall Street.
A temporada de mais de uma década nos Estados Unidos foi marcada pelo episódio que mudaria sua vida e também o mundo: o 11 de Setembro de 2001.
Ela estava no escritório do Deutsche Bank, onde trabalhava, no quarto andar do World Trade Center 4, quando o primeiro avião atingiu um dos edifícios do complexo.
O ataque terrorista, que ocasionou a queda das Torres Gêmeas e a morte de 2.996 pessoas, abalou os alicerces da vida até então planejada por Stéphanie.
Cinco anos depois, ela trocaria Nova York por São Paulo, onde vive atualmente com o marido, mineiro de Poços de Caldas, e os três filhos.
A alemã de 46 anos, que se considera brasileira de coração, relata que voltou ao país de adoção após ter sobrevivido aos atentados para realizar o sonho de criar uma editora voltada ao público infantil.
A seguir, leio o relato da fundadora da Magia de Ler, que distribui um jornal quinzenal, o 'Joca', que traduz os fatos da atualidade para crianças. A publicação é adotada como material escolar em cem escolas e conta hoje com 10 mil assinaturas.
TESTEMUNHA OCULAR
"Eu vi o primeiro avião entrando no prédio, uma bola de fogo atrás de mim. Saí correndo, assim como todo mundo.
Graças a Deus, nosso escritório era no quarto andar. Nós nos sentamos na calçada, pensando que iríamos voltar. Meu telefone, bolsa, tudo tinha ficado para trás. Naquele primeiro momento, falavam que um avião de acrobacia tinha errado a mira.
Minutos depois veio o segundo avião, por trás. Imaginei que estavam bombardeando a gente. Houve várias explosões. Saí correndo. Tentei entrar em algum lugar, escapar. Vi pessoas se jogando dos edifícios.
Pensei: 'Eu não vou ficar aqui'. Precisava avisar meus pais que eu estava bem.
Voltei para casa de metrô. Morava na rua 82.
Sem chave de casa, pedi a uma vizinha para ligar para o meu pai, que estava em em São Paulo. Já minha mãe, em Paris, tinha ido rezar numa capela milagrosa, enquanto esperava notícias.
Não perdi amigos nem conhecidos nos atentados. Todo mundo me pergunta: 'É um grande trauma?' Não sei explicar. É tão fora da realidade. É improvável que aconteça de novo comigo.
Já fui assaltada no Brasil. É uma coisa mais possível e acontece todo o dia.
Todo 11 de Setembro tudo aquilo volta, machuca. Só quem estava lá consegue imaginar. Parecia que Nova York inteira era uma família. As pessoas se abraçavam, acendiam velas juntas, cantavam. Em vez de ficar em casa sozinhos, ficávamos uns com os outros. Isso foi incrível.
Havia também um silêncio que nunca tinha visto em Nova York, um lugar que você nem consegue dormir direito, pois ouve-se barulho o tempo todo.
Os atentados foram numa terça. Na sexta, já estávamos trabalhando de novo em um galpão em New Jersey, com um monte de computadores e todos os meus arquivos. Tinha também massagista, psicólogo.
GUINADA DE VIDA
O atentado acabou sendo mais um gota, de várias que foram se formando e me colocaram em outra rota. Fui trabalhar em banco, que é onde se ganha dinheiro.
Estava feliz, mas trabalhava em horas absurdas. Meus amigos também saiam depois da meia-noite. Aquilo era o sucesso. É como uma droga. Você é jovem, tem de 20 a 30 anos e se acha o máximo, sendo que não sabe nada.
Fui despedida seis meses depois do 11 de Setembro. O projeto de um banco digital no qual estava envolvida não deu certo. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos [pós-atentados] se fecharam para todos os estrangeiros. Eu não estava mais conseguindo emprego.
Decidi voltar para o Brasil, mas antes 'apliquei' [se inscreveu] para um mestrado na Universidade Columbia. Fui aceita e acabei retornando aos Estados Unidos.
No meio disso tudo, conheci meu marido, que é mineiro de Poços de Caldas e também trabalhava no mercado financeiro em Nova York.
Fui estudar relações internacionais para sair da área de finanças. Queria trabalhar na ONU, mas a maioria dos empregos lá eram para trainee com menos de 32 anos. Cheguei tarde. Foi muito frustrante.
SONHO DE CRIANÇA
Tudo isso serviu para entender um sonho que sempre me acompanhou.
Quando meus pais se mudaram para o Brasil, eles assinavam as revistas francesas e alemãs para crianças. E muitas eu tenho guardadas até hoje.
Quando estava no banco e tinha bastante dinheiro, eu contratei uma consultoria da FGV para fazer uma pesquisa de mercado para saber se este tipo de publicação daria certo no Brasil. A conclusão foi que havia espaço.
Desenhamos um modelo de negócio e resolvi bater à porta dos franceses: 'Vamos para o Brasil. Olha a oportunidade'.
Minha ideia era traduzir e tropicalizar os títulos. Os franceses falaram não.
Na mesma época, meu marido recebeu uma oferta para voltar para o Brasil em 2006. Já tínhamos dois filhos. O terceiro nasceu aqui.
Em 2007, eu criei minha editora com duas revistas para crianças: 'Toca" (para crianças de 1 a 4 anos) e 'Peteca' (para 5 a 8 anos).
Como era nova no mercado fiz um monte de erros. Tinha certeza de que como na Europa os pais iriam assinar as revistas. Depois de três números, eu fali. Foi uma dor. Lembro das noites sem dormir. Era responsável pelos funcionários e também pelos mais de mil assinantes.
O legal foi que eu me abri e nenhum deles pediu o dinheiro de volta. Fui em frente apesar das dificuldades.
VERSÃO EMPREENDEDORA
Empreender é uma construção. Demora. Depois de falir em 2008, consegui um investidor que fez um aporte na editora. Para poder me manter e aos funcionários, eu fazia revistas para outras empresas. Sobrevivi.
Em dezembro de 2011, lancei o 'Joca', um jornal quinzenal, cujo público alvo de assinaturas são escolas e não mais os pais.
Como não quero entrar com propaganda para criança e preciso me sustentar pelas vendas de assinatura, passei a levar o 'Joca' para escolas grandes.
Cerca de cem escolas privadas passaram a usam o 'Joca' como material obrigatório. O aluno recebe uma lista de livros do ano e entre os itens tem uma assinatura do jornal.
É muito mais que um material de leitura. O jornal é uma ponte entre a sala de aula e o mundo.
A escolar, como está hoje, ficou no século 19. O 'Joca' traduz para crianças e jovens, na linguagem deles, as notícias da atualidade. Fala do muro entre o México e os Estados Unidos, a eleição de Trump, a crise dos refugiados.
Estamos ensinando a criança a ler o mundo e a ser crítica. É dar voz a elas e também o sentimento de serem parte da sociedade e de que podem fazer algo para mudar o mundo.
Acredito que desta forma se pode transformar toda uma geração e torná-la mais dona de si. Metade dos empregos que os meus filhos vão ter ainda não existe.
Não adianta aprender formulas. É preciso ensinar a trabalhar em time, saber ser empático, entender o mundo, saber culturas diferentes e solucionar problemas.
Temos hoje pouco mais de 10 mil assinaturas. Os desafios ainda são enormes.
Para chegar às escolas públicas, eu me inscrevi no Proac, um programa de incentivo e chegamos a distribuir 60 mil jornais por quinzena para para escolas públicas.
Neste momento, não tenho mais essa verba e até hoje recebo e-mails. Só consigo doar assinaturas para 30 instituições públicas. O 'Joca' vai rodando de classe em classe e volta sem nenhuma dobra. É incrível.
Sempre fico batendo na porta de governos e instituições para mostrar os nossos impactos.
Em 2015, uma avaliação de impacto do 'Joca', realizada pela organizarão francesa Planète d'Entrepreneurs, em parceria com a HEC Paris, constatou que 26% dos nossos leitores debatem assuntos como Ciências, Tecnologia e Finanças, enquanto apenas 2% dos não leitores falam desses temas.
Aqueles que não leem o 'Joca' falam mais sobre celebridades e criminalidade. Estamos aumentando o repertório das crianças e ajudando a formar o cidadão do século 21.
Olhando para trás, eu vejo que retornar ao Brasil e me tornar uma empreendedora valeu muito a pena. Agora, já começo a colher os frutos e ver transformação.