Sérgio Pardellas - IstoE
O maior partido da base governista planeja abandonar Dilma por um projeto próprio de poder. A saída de Michel Temer da articulação foi o primeiro passo. Por pouco, o rompimento definitivo não foi anunciado na semana passada pelo próprio vice-presidente
Desde a redemocratização, o PMDB se especializou na modalidade do bicanoísmo, cujo principal atributo é saber navegar com um pé em cada canoa – a governista, preferencialmente, e a da oposição, válvula de escape para o caso de a parceria com o governo naufragar. Sem dispor de um nome capaz de triunfar nas urnas na disputa presidencial – algo que nem o doutor Ulysses Guimarães conseguiu, apesar de muitos terem botado fé no velhinho em 1989 –, o partido sempre adotou essa estratégia para se manter eternamente associado ao governo federal. Qualquer governo, sem distinção ideológica ou partidária. Assim, atuando como uma espécie de apêndice do Planalto, o PMDB nunca largou as benesses do poder.
Em muitos casos, estabeleceu com o Executivo uma relação de dependência mútua retroalimentada pelo fisiológico toma lá, dá cá. Mas todas as vezes em que pressentiu o barco do governo afundar, o PMDB – sustentado por uma heterogênea federação de caciques regionais – abraçou a tese da ala “oposicionista” da sigla, que já estava lá, a postos, com um pezinho na outra canoa, a convocar os demais para embarcar na nau tmais segura.
A história se repete agora. Em meio ao mar revolto em que se equilibra Dilma Rousseff, o PMDB prepara o desembarque da aliança governista. Em relação a outros momentos da política nacional, há duas diferenças cruciais: o governo, mais impopular desde Collor, nunca esteve tão refém do PMDB e o partido nunca esteve tão próximo de deixar de ser um mero coadjuvante para se tornar o protagonista principal e uma alternativa real de poder, com possibilidades concretas de chegar ao Planalto.
Agora, em caso de impeachment, ou em 2018, com o lançamento de uma candidatura própria. Ou seja, pela primeira vez, depois de quase três décadas, o partido começa a desistir de um projeto para apostar em outro mais vantajoso, só que pilotado por ele próprio, não por outra legenda. É o fio condutor capaz de unir hoje todos os peemedebistas, de qualquer vertente ou corrente.
DISSIDENTE
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, diz que "time que não joga, não tem
torcida", ao apoiar o vôo solo do PMDB. Sua tese ganha cada vez mais adeptos
O que se pode chamar de primeiro ato da deserção do PMDB foi a saída do vice-presidente Michel Temer da articulação política do governo, na semana passada. Temer anunciou a decisão em reunião com a presidente Dilma no Palácio do Planalto na manhã de segunda-feira 24. Na conversa, demonstrou contrariedade com o que chamou de “ambiente de intrigas e fofocas” instalado no Planalto desde que se apresentou como alguém capacitado para reunificar o País. O estopim foi o imbróglio envolvendo a liberação de R$ 500 milhões em verbas para políticos aliados.
Principal auxiliar de Temer, o ministro da Aviação Civil, Eliseu Padilha, havia recebido o sinal verde para o pagamento, mas fez papel de bobo da corte de Dilma: negociou com os parlamentares, acertou a liberação do dinheiro e, aos 45 minutos do segundo tempo, viu seus acordos serem desautorizados pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy. “Ninguém aqui é palhaço. Chega!”, teria desabafado Temer.
Contribuiu para a decisão uma interpretação bem particular do vice-presidente a respeito do que chamou de “sinais favoráveis a ele” emitidos por atores políticos nos dias que antecederam o anúncio oficial: as manifestações pelo impeachment e as declarações de FHC em favor da renúncia da presidente. Segundo um interlocutor de Temer, o vice acredita ter se credenciado entre segmentos organizados da sociedade como um porto seguro para o pós-Dilma. Reforçou esse sentimento a calorosa recepção a Temer na FIESP na quinta-feira 27.
O TIMONEIRO
O vice Michel Temer (ao centro) circula com desenvoltura por todas as
alas do PMDB. Ao deixar a articulação política, ele começa
a levar o partido para fora do governo
Ao deixar de fazer a ponte com o Congresso, Temer abriu mão da atribuição delegada por Dilma a ele em abril, quando a presidente tentou jogar água na fervura da crise, erguendo uma bandeira branca ao Congresso, onde ela havia amargado derrotas em série desde o início de seu segundo mandato.
Era uma situação emergencial. Os partidos aliados sabotavam os projetos do governo e colocavam em risco o ajuste fiscal. Ao assumir a função, Temer comandou o balcão político com as fichas de sempre. No Palácio do Jaburu, adotou um modelo de eficácia mais do que comprovada onde a máxima é: pleito combinado não é caro. É pleito atendido.
Mas o vice não esperava as interferências da Casa Civil, que insistia em boicotá-lo, segundo relato de aliados do peemedebista. Temer costurava os acordos, mas não tinha poder para honrar o que prometia. Como, em Brasília, não adianta ter caneta sem tinta, Temer se viu esvaziado. Mais do que isso. Havia pelo menos dez dias que as cartas do jogo político já eram distribuídas por outro integrante da equipe.
Nas últimas semanas, Dilma havia delegado a missão a Giles Azevedo, seu assessor particular. Sua primeira tarefa foi reunir-se com deputados do PP, PMDB, PT e PC do B para tentar blindar o governo nas CPIs do BNDES e dos Fundos de Pensão. Ao saber do atropelo, Temer ficou enfurecido, como há muito não se via.
Segundo apurou ISTOÉ com pessoas próximas ao vice, na segunda-feira 24 Temer estava disposto a romper definitivamente com o governo – não apenas abandonar a coordenação política. Uma romaria de parlamentares do partido dirigiu-se ao Jaburu para demovê-lo da ideia. Obtiveram êxito e o encontro produziu um novo e significativo consenso. Ficou decidido que o partido desembarcará do governo de maneira lenta e gradual.
“É melhor do que uma decisão individual de Temer agora. Não seria bom para ninguém implodir tudo de uma vez”, ponderou um peemedebista que esteve no gabinete do vice-presidente semana passada.
O gesto do PMDB aprofunda o isolamento de Dilma. Para a presidente, perder o PMDB no momento de grande turbulência política será o pior dos mundos. Nas duas vezes em que a sigla não esteve no governo após a redemocratização, o Planalto colecionou problemas: ocorreram o impeachment de Collor e o mensalão de Lula. Embora o plano seja pelo divórcio sem traumas, a ala favorável ao “rompimento já” com o governo engrossa o coro pela antecipação do Congresso destinado a oficializar a debandada.
Inicialmente, o evento estava marcado para setembro, mas foi adiado para 15 de novembro justamente para evitar uma tomada de decisão a sangue quente, no calor dos acontecimentos desfavoráveis a Dilma. Nos últimos dias, a ideia inicial foi retomada com toda a força. Quem mais pressiona são os presidentes de diretórios estaduais do PMDB.
“Hoje, se fizéssemos uma consulta interna para decidir se o PMDB deveria continuar na base ou sair, a bancada decidiria com folga pela saída”, diz o deputado paranaense João Arruda.
Um dos expoentes da ala peemedebista que prega a saída imediata do governo é o ex-vice-presidente da Caixa, Geddel Vieira Lima, presidente do PMDB baiano. Cerram fileiras como já é público e notório o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (RJ) e o deputado Jarbas Vasconcelos (PE).
“O que fortalece minha tese é a sensação de que estamos (o País) sem rumo”, afirmou Geddel. Para Rafael Cortez, da consultoria Tendências, o movimento já era aguardado, considerando o momento de baixa popularidade do governo. “Num sistema como o nosso, quando o governo está com popularidade, há uma tendência de os partidos aliados se aproximarem. Quando o governo está impopular, a tendência é que esses partidos se afastem para não ficarem com uma imagem negativa”, explica.
Este raciocínio vale para partidos menores, como o PDT e PTB, que também ensaiam o rompimento. O caso do PMDB é mais complexo e remonta aos primórdios da legenda. Pouco habituada às negociações do varejo político, Dilma cometeu um erro crasso ao apostar na fidelidade do PMDB a todo e qualquer custo: não levou em consideração o histórico da legenda. Fundado durante a ditadura, o PMDB nasceu sob o signo da ambigüidade, dividindo-se entre “autênticos” e “moderados”.
No centro do partido, atuando como um pêndulo entre as duas correntes, posicionava-se Ulysses Guimarães. Em 1977, quando o presidente Ernesto Geisel foi derrotado ao encaminhar a reforma do Judiciário ao Congresso, resultando no fechamento do Congresso e no chamado “pacote de abril”, Ulysses se aliou aos “autênticos”, em contraposição aos “moderados” sob a batuta de Tancredo Neves. Depois, com o recrudescimento do regime ditatorial, ele levou o partido para o caminho da moderação. Hoje, quem cumpre papel semelhante ao exercido por Ulysses é Temer.
No segundo mandato de Lula, o vice-presidente foi o fiador da aliança do PMDB com o PT. Até então, o partido, embora comandasse dois ministérios, não estava aliado formalmente aos petistas. Agora, é Temer quem conduz o partido rumo ao rompimento e à candidatura própria.
Toda vez que era questionado sobre o PMDB, o ex-presidente da República, Jânio Quadros, respondia com outra pergunta: “Ao qual PMDB você se refere? O das antessalas palacianas? Ou o dos comunas descarados?” Hoje, o PMDB que emerge da crise política é aquele que cansou de ser a legenda das “antessalas palacianas”. Como diz a peça publicitária da legenda: “Não são as estrelas que vão me guiar. São as escolhas que vão me levar”. Ainda não se sabe ao certo quando o desembarque do PMDB do governo será oficializado. Mas uma certeza apresenta-se insofismável: o partido já fez sua escolha.
Fotos: LUIS MACEDO, Eraldo Peres/AP Photo; JOEDSON ALVES/DINHEIRO; ARQUIVO/AE