Nas mãos de um manifestante em Dresden, o cartaz traz a foto de um superlotado barco inflável, sob a sentença: "De jeito nenhum: vocês não farão da Europa seu lar". É a figuração atualizada de um mito com raízes imemoriais: a invasão do Império pelos bárbaros. Dobrados à narrativa destilada por movimentos extremistas, governantes europeus, da Hungria à Grã-Bretanha, falam de uma "ameaça", planejam erguer muros e sugerem anular a regra comunitária da livre circulação de pessoas. Afortunadamente, Angela Merkel resiste às pressões, que qualificou como "vergonhosas", e anuncia que a Alemanha acolherá 800 mil refugiados. A chanceler acerta duas vezes: na arena dos princípios e no terreno da demografia. O "Império" precisa dos "bárbaros".
As taxas de fertilidade na Europa situam-se bem abaixo da taxa de reposição demográfica (dois filhos por mulher). França (2,02) e Grã-Bretanha (1,93) são exceções num quadro ilustrado pela própria Alemanha (1,4), além da Itália (1,43), da Espanha (1,32) e de Portugal (1,27). Os países sem saldo migratório positivo já experimentam declínio demográfico absoluto. A população portuguesa, de 10,5 milhões, pode reduzir-se a 6,3 milhões no horizonte de 2060. Na Espanha, cada nova geração tende a ser 40% menor que a anterior. Stefan Lofven, primeiro-ministro sueco, disse que o alto contigente de solicitantes de asilo representa "um grande desafio" –mas "também um ativo". "Se não os recebermos agora, teremos um problema gigantesco no futuro". Já Thomas de Maiziere, ministro alemão do Interior, explicou que seu país precisa de, no mínimo, 533 mil imigrantes por ano.
"A Alemanha não está sobrecarregada", assegurou.
No fundo, o welfare state na Europa depende de um forte influxo de jovens imigrantes. A população envelhece no ritmo ditado pela redução da natalidade e pelo crescimento da expectativa de vida. Na União Europeia (UE), a população entre 25 e 54 anos, núcleo da força de trabalho, retrocederá dos atuais 42% do total para menos de 35%, em 2060. Por outro lado, no mesmo intervalo, a população com 65 anos ou mais saltará de 18,5% para 28,5%. Os impactos dessa transição sobre o mercado de trabalho e os sistemas previdenciários são bastante óbvios. Menos evidentes, mas igualmente devastadores, são as implicações políticas e culturais do fenômeno. "Movemo-nos na direção de uma sociedade gerontocrática "" de um governo dos idosos", alerta o consultor espanhol Alejandro Macarrón.
A "invasão bárbara" é uma lenda esculpida no imaginário social pelas espátulas do nativismo romântico e da xenofobia. Nos EUA, 13% dos habitantes nasceram fora do país. Na UE, apenas 6,3% nasceram fora do bloco comunitário. Os incessantes fluxos imigratórios renovam a sociedade americana, propiciando-lhe a oportunidade de sucessivas reinvenções. Numa sociedade gerontocrática, em contraste, a aposentadoria escraviza o trabalho, a pensão cerceia a educação, a imobilidade sabota o movimento, a tradição cancela a inovação e o futuro capitula face ao passado.
Os bárbaros estão no poder, ao menos na Hungria, cujo primeiro-ministro, Viktor Orbán, qualificou os refugiados como "enxames de saqueadores". Na ponta oposta, Merkel invocou o "espírito europeu" para cavar um fosso à frente dos extremistas. Caricaturizada com um infame bigodinho nazista em tantas manifestações esquerdistas na Grécia e na Espanha, a chanceler alemã enfrentou as vaias dos desqualificados de Dresden mas garantiu que "não haverá tolerância diante dos que questionam a dignidade dos outros". Das palavras, passou aos atos, suspendendo as regulações que restringem o julgamento dos pedidos de asilo ao país de entrada e prometendo avaliar todas as solicitações de refugiados sírios. O "governo dos idosos", não a "invasão dos bárbaros", é a verdadeira ameaça às nações europeias.