sábado, 29 de agosto de 2015

"Daí que", por Ruy Castro

Folha de São Paulo


Ao contrário do que se acredita, a Livraria Leonardo Da Vinci não acabou –ainda. 

Sua proprietária, Milena Dichiade, considerou propostas de pessoas ciosas da preservação do patrimônio do Rio, mas pensou melhor. A Da Vinci é, antes de tudo, uma livraria. Exige livreiros para geri-la. Neste momento, Milena estuda uma composição com alguns –qual rede não se sentiria premiada com uma Da Vinci no seu cartel?

O Rio deve à Da Vinci boa parte de seu peso cultural desde os anos 50. Foi por ela que os cariocas leram os existencialistas, os fenomenologistas, os teatrólogos do absurdo, os autores do Nouveau Roman, os semiologistas, os estruturalistas e os primeiros ideólogos da cultura de massas, da luta armada, da ecologia e de tudo em que se acreditou desde então.

A Nouvelle Vague vivia na tela do Paissandu, mas a teoria estava nas revistas que a Da Vinci trazia, como "Cahiers du Cinéma" e "Positif". Histórias em quadrinhos, também. O que, para nós, eram os gibis, a ser abandonados em adultos, os franceses chamavam de "bandes déssinées" e levavam tremendamente a sério. E, ao babar diante do humor quase selvagem da revista "Hara-Kiri", quem imaginaria que, um dia, ela simbolizaria a liberdade de expressão com o nome de "Charlie Hebdo"?

Você dirá, e daí? Daí que, por causa da Da Vinci, o Brasil parecia mais senhor de si mesmo e menos distante do Primeiro Mundo. Mesmo já sob a ditadura militar, uma plêiade de intelectuais insistia na busca do conhecimento em alto nível, e a Da Vinci era o canal para adquiri-lo. Em seu apogeu, nos anos 70, era uma livraria capaz de concorrer com a parisiense La Hune, em Saint-Germain –e que também está em vias de fechar.

Em 2016 serão 50 anos em que entrei na Leonardo Da Vinci pela primeira vez. Gostaria de comemorar este cinquentenário.