quinta-feira, 24 de agosto de 2023

'O bolsonarista era um homem', por Flávio Gordon

 

O humorista Bismark Fugazza, do canal Hipócritas, que passou três meses preso por ordem de Alexandre de Moraes


“O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem”

(Manuel Bandeira, O Bicho)


Foi num dos inesquecíveis 91 dias passados no cárcere que o comediante e preso político Bismark Fugazza, do canal Hipócritas, recebeu a primeira visita da esposa – que se descobriu grávida uma semana após a prisão do marido – e dos filhos, uma menina de 5 e um menino de 2 anos de idade. Ao término do período de visita, o menorzinho recusou-se a sair do colo do pai. “Filho, agora você vai para casa, mas o papai terá de ficar aqui. Mas não precisa chorar porque logo, logo, o papai estará em casa, tudo bem?” – o preso tentou inutilmente consolá-lo. 

“Não, papai, vem comigo. Eu sou forte e vou te levar para casa” – argumentou o menino, explodindo num choro convulsivo. Depois de passá-lo para o colo da mãe, Bismark ainda o viu implorar por detrás de uma grade: “Vem, papai, vem!” Choravam a criança, a irmã, a esposa, o prisioneiro e até mesmo os policiais que testemunhavam a cena.

A cena foi relatada pelo próprio Bismark Fugazza à intrépida Cristina Graeml, em sua primeira entrevista concedida após a soltura, aqui mesmo nesta Gazeta do Povo. Depois de 91 dias preso, a Polícia Federal concluiu em relatório não haver motivos para a manutenção de sua prisão preventiva. 

Antes tivesse concluído, a tempo, pela inexistência de motivos para a sua prisão, para começo de conversa, porque ninguém devolve a um inocente preso o tempo perdido. Um tempo no qual foi privado, por exemplo, do convívio com o pai adoentado, cujo câncer decerto agravou-se com o sofrimento causado pela prisão do filho, levando-o a óbito apenas uma semana após a soltura. 

Um tempo em que padeceram emocionalmente a mulher e os filhos, chegando a mais velha a ter desenvolvido uma doença de pele de origem psicossomática. Um tempo em que, enquanto sofria as agruras do cárcere, o preso político ainda tinha a reputação assassinada por uma imprensa amestrada formada por extremistas políticos, que pretendiam desumanizá-lo e, reduzindo-o ao estigma de “bolsonarista”, justificar a sua prisão ilegal e imoral.

Ao contrário da narrativa fraudulenta do consórcio midiático antibolsonarista, Fugazza não foi preso pelos eventos do 8 de janeiro, quando nem sequer estava no Brasil. Alvo de um pedido de prisão existente desde o dia 13 de dezembro de 2022 (muito antes do 8 de janeiro, portanto), o comediante foi preso pela acusação genérica de ter cometido o crime de “tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito” e de – pasmem! – “perseguir e ameaçar” o atual mandatário brasileiro (que, como sabemos, só anda com seguranças desarmados, por achar que arma é coisa de covarde). 

Qual foi o crime real de Fugazza? Ter sido um dos milhões de brasileiros inconformados com a condução do processo eleitoral, a começar pela soltura de um condenado por corrupção. Um dos milhões de brasileiros frustrados por não ver atendida a sua demanda pelo voto impresso (única medida eficaz contra fraudes, segundo o próprio hacker interrogado recentemente na CPMI). Um dos milhões de brasileiros a manifestar o seu incômodo com comportamento parcial das autoridades eleitorais, juízes que hoje celebram abertamente o cumprimento de uma “missão dada”, regozijam-se com sua vitória contra o “bolsonarismo”, e anunciam o seu projeto político de combater a “extrema-direita”.


Bismark não virou alvo do aparato repressivo do Estado por ter cometido algum crime tipificado nas leis brasileiras, mas por esposar uma determinada visão ideológica, manifestar-se politicamente e exercer a sua cidadania, algo que só é crime em ditaduras


Não, Bismark não virou alvo do aparato repressivo do Estado por ter cometido algum crime tipificado nas leis brasileiras, mas por esposar uma determinada visão ideológica, manifestar-se politicamente e exercer a sua cidadania, algo que só é crime em ditaduras, jamais em democracias verdadeiras. Quiseram prendê-lo não como indivíduo, mas como representante de uma categoria política expurgável. E, na ausência de amparo nas leis existentes, os que o quiseram preso precisaram inovar e criar a democracia defensiva. “Rapaz, o careca não gosta mesmo de ti” – teriam dito, segundo conta Fugazza, os agentes federais que lhe entregaram o mandado de prisão preventiva.

Assim como o incêndio do Reichstag para o regime nacional-socialista, tudo se passa como se o 8 de janeiro já estivesse prefigurado na ditadura lulopetista vindoura. Parafraseando Voltaire sobre Deus, dir-se-ia que, se o 8 de janeiro não existira, teria sido preciso inventá-lo. Convém lembrar que, ainda em 14 de dezembro de 2022 (dia seguinte ao pedido de prisão de Bismark), um dos magistrados incumbidos da caça ao bolsonarismo já havia dito, entre risos de contentamento: “Ainda tem muita gente para prender”.

Fugazza foi preso no dia 17 de março, no Paraguai. Segundo o seu relato, foi tratado com cordialidade pelos policiais paraguaios, aparentemente espantados com a esdrúxula ordem de prisão que haviam sido obrigados a cumprir. Conduzido até a fronteira, o preso político foi apanhado pela Polícia Federal brasileira em terras paraguaias, com grande estardalhaço. Para a diligência, chegou-se a fechar a Ponte da Amizade, como se se tratasse ali de um criminoso de alta periculosidade, um terrorista ou um narcotraficante. Mais tarde, ainda de acordo com Fugazza, vários policiais federais e agentes penitenciários teriam lhe dito, ao perceberem quem de fato era a pessoa que tinham diante de si: “Você não é bandido. Você não é bandido”.

Mas, enquanto tinha início o martírio de Bismark Fugazza, a imprensa amestrada cumpria o papel que lhe é designado cumprir. “Youtuber de extrema-direita é detido” – atacavam uns. “Bolsonarista é detido no Paraguai por atos golpistas” – mentiam outros. “Youtuber bolsonarista é preso no Paraguai” – ajuntavam outros mais. Por uma incrível coincidência, cobriam a pessoa com os habituais estigmas desumanizadores, de modo a torná-la alvo daquilo que, justamente, magistrados politicamente alinhados ao novo regime prometeram combater e derrotar – o “bolsonarismo” e a “extrema-direita”. Como escrevi em artigo de junho de 2022, já antevendo o que estava por vir:

“Na grande imprensa, o estigma bolsonarista – estampado em pessoas como o cantor Sérgio Reis, a médica Nise Yamaguchi, o empresário Luciano Hang, o jornalista Allan dos Santos e tantos outros – serve para definir os alvos da perseguição estatal e, em seguida, para legitimar essa perseguição. Vitimados por uma lógica tipicamente stalinista – ‘deem-me um nome que eu arrumo um caso’ –, os estigmatizados são previamente culpados do crime de... bolsonarismo (...) Na realidade social criada por essa espécie de adelismo linguístico, tudo se passa como se o estigma bolsonarista indicasse a presença de uma impureza ou pecado irredimível, bastando para que o seu portador seja ostracizado, tratado como pária, e privado das garantias formalmente previstas num Estado de Direito. Fulano é bolsonarista, logo, contra ele tudo é permitido – eis, enfim, o silogismo consagrado nas redações, nos estúdios, nos palcos e nos tribunais do Brasil de nossos dias.”

Como em todo regime totalitário, o estigma marca o início da prisão política de Bismark Fugazza. O pai de dois filhos, marido de uma esposa grávida do terceiro, filho de um pai com câncer, cidadão brasileiro e humorista talentoso precisa ser despersonalizado, reduzido a um “bolsonarista”, essa coisa execrável, espécie de patógeno do qual o organismo político-social – a nossa saudável e imaculada Nova República – precisa se defender. Não há preso político de ditaduras (nacional- ou internacional-) socialistas que não tenha sido submetido a esse processo de despersonalização e desumanização. Como escreveu a historiadora Anne Applebaum em Gulag: 

Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos: “Os gulags não foram construídos para encarcerar pessoas pelo que fizeram, mas pelo que eram”. 

Assim se passou com Fugazza, que não foi parar num gulag tropical por algo que tenha feito, mas por aquilo que é.


Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017)



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