“Quando saí daqui, grassava a tese de Littré, segundo a qual o crime é uma loucura; quando voltei, o crime já não era uma loucura, mas justamente o bom senso, quase um dever – quando nada um protesto nobre.” (Dostoievski, Os Demônios)
“Lamentamos a morte do policial no Guarujá, mas...” Com esse introito (ver um exemplo), colocado estrategicamente antes da adversativa que prepara o que se pretende realmente dizer, a extrema-esquerda no governo, nos tribunais e em veículos de imprensa como Folha e Globo (hoje indistinguíveis de órgãos oficiais de propaganda governamental federal) dedicou-se ao seu esporte favorito: a bandidolatria. Por óbvio, é falso e meramente protocolar o lamento em relação ao destino de Patrick Bastos Reis, o soldado da Rota que, aos 30 anos, assassinado por um “sniper” do tráfico, deixa viúva a esposa e órfão um filho de 3 anos. Fosse sincero, não veríamos tamanha diferença de tratamento entre a morte do policial, que gerou um silêncio ensurdecedor, e a dos suspeitos abatidos na subsequente operação da polícia contra o crime organizado, que provocou a histeria habitual e, sem que nada tivesse sido apurado, acusações de “chacina”, “tortura”, “genocídio” etc.
Com efeito, para parafrasear o comunista que hoje ocupa a pasta da Justiça e da Segurança Pública no governo federal, a reação à primeira e às demais mortes “não parece ser proporcional”. Afinal, enquanto os bandidos comemoravam a morte de Patrick, e mais dois policiais eram alvejados no litoral de São Paulo, o ministro dos Direitos Humanos (sobre quem já escrevi nesta coluna) adotava um tom grave para falar em impor um limite. Ao assassinato de policiais? Obviamente que não. À reação da polícia ao crime organizado. Prioridades...
A esquerda é incapaz de condenar inequivocamente o ataque armado contra policiais porque partilha de uma visão romantizada do crime, visto como força revolucionária contra o sistema capitalista opressor
A defesa prioritária dos “direitos” de narcoterroristas fortemente armados – ah, se as tias do Zap, os censurados, os presos políticos do 8 de janeiro, o Monark, o Allan dos Santos, o Daniel Silveira etc. gozassem das mesmas prerrogativas e fossem contemplados com o discurso “garantista” de ocasião – por parte da extrema-esquerda nacional é relativamente simples de se compreender. Afora as manifestações pessoais de um certo fetiche sexual pelo mundo do crime (fenômeno muito bem captado por Carlinhos de Oliveira no livro Terror e Êxtase, de 1978, logo adaptado para o cinema por Antônio Calmon), a esquerda é incapaz de condenar inequivocamente o ataque armado contra policiais porque partilha de uma visão romantizada do crime, visto como força revolucionária contra o sistema capitalista opressor. Com efeito, como já escrevi outras vezes, a ideia do bandido como revolucionário, como fator disruptivo da ordem burguesa, surge com frequência nas falas e nos feitos da intelligentsia patropi. Aparece no lema “seja marginal, seja herói”, de Hélio Oiticica, ou em filmes como O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. Na sugestão de um conhecido jornalista de “dar voz aos bandidos”, na apologia do assalto feita por uma conhecida “intelectual” petista, ou na relação íntima de amizade (com pitadas de “terror e êxtase”) entre um herdeiro milionário ultraesquerdista e um narcotraficante carioca.
No caso do blogueiro ultrapetista Eduardo Guimarães, a função revolucionária do crime foi manifesta de maneira mais direta: “A revolução está chegando, mas não será daquele tipo em que o povo se arma e marcha tal qual exército para cima dos opressores. A revolução se dará através da explosão da criminalidade. Será uma revolução de guerrilha. A justiça será feita nos semáforos, em cada esquina [sic]”. A mesma toada seguiu o blogueiro stalinista Anderson França, outrora colunista da Folha de S.Paulo, que chegou a confessar desejos homicidas para com Bolsonaro, familiares e apoiadores. Certa feita, em seu perfil no Facebook, o sujeito propôs uma espécie de “frente ampla” reunindo a militância de extrema-esquerda e o Comando Vermelho: “Pense comigo que: A PM arrega pro crime [sic], mas bate em militante. Imagine o dia em que a militância fechar com o crime, APENAS PENSE [sic], a força do aço dos menino [sic], a disposição dos manifestante [sic]. CVRL e esquerda junto [sic]. Aliás, né? A História já conta. Eu fechava lindo nessa frente. LINDO [sic]”.
Mas se engana quem pense que a celebração revolucionária do crime e a vilanização das forças policiais são obra exclusiva de esquerdistas radicais individuais. A coisa vem sendo feita de modo sistemático pelo establishment midiático, tanto no jornalismo quanto no entretenimento. Lembro-me que, em 29 de agosto de 2016, uma minissérie global de nome Justiça, fiel à antiga tradição da dramaturgia brasileira, que consiste invariavelmente em tratar bandidos como heróis do “povo” e policiais como serviçais das “elites”, fazia de um sargento da PM o grande vilão da trama. Na mesma noite, e quase no mesmo horário, um grupo de petistas, black blocs e outros radicais que se manifestavam contra o impeachment de Dilma Rousseff espancavam um homem que gritara “Viva a PM!” na Avenida Paulista, acusando-o de “fascista” (rótulo com o qual os comunistas sempre desumanizaram os seus adversários antes de eliminá-los). Meses antes, uma campanha publicitária de uma marca norueguesa de materiais esportivos fizera um clip sobre o Rio olímpico, no qual o craque Ronaldinho Gaúcho salvava – sim, isso mesmo, salvava! – um garoto perseguido por PMs numa favela carioca. Simbolizando ousadia e heroísmo, o menino levantara o dedo médio para os policiais, mandando-os ir “se f…” Também em 2016, o vazamento dos dados da Open Society, de George Soros, informava-nos que, na planilha em que constava o montante doado pelo bilionário globalista ao “coletivo” Mídia Ninja, este aparecia descrito como “o olho coletivo para reduzir a violência policial”. Na descrição do projeto, lia-se o objetivo de “fortalecer uma estrutura de mídia independente no Brasil visando a reportar, promover discussão e inibir a violência policial contra manifestantes”.
Embora não parecessem, todos esses fatos estavam conectados. Como componente essencial na vasta estratégia globalista de enfraquecimento dos poderes locais em favor da consolidação de um poder centralizado em nível mundial, as campanhas anti-PM (sob o mote da “desmilitarização”) se multiplicaram desde então. Não é obra do acaso, portanto, que a criminalidade tenda a aumentar sempre ali onde partidos, movimentos ou agentes de extrema-esquerda conquistem posições de poder e influência na sociedade. Como já observei em artigos anteriores, foi exatamente isso que se deu na Venezuela, por exemplo, onde a campanha de desmoralização das polícias partiu, antes de mais nada, do próprio governo chavista, aliado do partido que nos governa. Com o chavismo no poder, os números de homicídios aumentaram de maneira exponencial, atingindo, já com Nicolás Maduro, espantosos 92 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Para a mente revolucionária, a “explosão de criminalidade” é um dos meios pelos quais a ordem opressora atual pode ser rompida, abrindo caminho para um futuro radiante
Em artigo imprescindível sobre o tema, o sociólogo Roberto Briceño León chegou à conclusão de que a explosão de crimes violentos durante a vigência do regime chavista não foi por acaso, resultando, antes, de cálculo político e ação sistemática. Note-se que, em 1998, durante a corrida eleitoral, 4.550 homicídios haviam sido cometidos na Venezuela. Em 2004, após seis anos de governo Chávez, o número já quase triplicara, passando a 13.288. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes, que em 1998 era de 19,5, saltou para 51 no ano de 2003 – um crescimento aberrante. Por um lado, a crise política impulsionara a criminalidade. Mas, por outro – e esse é o argumento central de León –, o governo chavista agiu deliberadamente para impedir o seu controle e repressão. Nas palavras do autor:
“Há políticas que favorecem a violência. Uma delas tem sido o descrédito sistemático ao qual foi submetida a polícia, e que levou tanto a uma campanha de agressões e desqualificações verbais, como a medidas de desarmamento dos funcionários. No ano de 2002, a emissora de televisão do governo transmitiu sistemática e repetidamente a promoção do filme venezuelano intitulado Disparem para matar, como sempre fazem os canais de tevê quando estão preparando a audiência para uma estreia. Nas cenas escolhidas do filme para os comerciais, apresentava-se um oficial de polícia ordenando morbidamente a repressão em um bairro pobre; depois mostrava-se o crime cometido por um funcionário da polícia num rincão escuro; após um som estrepitoso do disparo, escutava-se o grito raivoso e longo da mãe da vítima que acusava os policiais: ‘Assassinos!’. Antes e depois da propaganda, agregavam-se frases políticas contra a oposição política ao governo.”
“Isso não parece ser casualidade” – continua o autor. “Não é de se estranhar, então, que em 1999 se atingisse 5.974 homicídios, que no ano 2002 chegaram a 9.244 e que em 2003 superaram as 13 mil vítimas. Quer dizer, os homicídios triplicaram em seis anos da chamada ‘revolução bonita’”. E arriscava um prognóstico: “Num contexto de violência política como a que descrevemos, a violência delinquencial, a violência das gangues e da polícia tenderá a se intensificar de modo notável, pois os indivíduos violentos encontrarão um espaço de fácil atuação e isso é o que já está acontecendo nestes últimos anos”.
O caso venezuelano ilustra à perfeição as terríveis consequências de uma cultura política para a qual a criminalidade violenta tende a ser encarada como potência revolucionária. Eis por que, onde quer que socialistas e revolucionários cheguem ao poder, com sua máquina de propaganda e desinformação bandidólatra, os índices de criminalidade subam consideravelmente. Para a mente revolucionária, a “explosão de criminalidade” – para falar como o blogueiro petista acima citado – é um dos meios pelos quais a ordem opressora atual pode ser rompida, abrindo caminho para um futuro radiante. Portanto, jamais se espere dos possessos por essa ideologia perversa qualquer empatia sincera para com as vítimas do crime.
Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017)
Flávio Gordon, Gazeta do Povo