sexta-feira, 13 de maio de 2022

'O Prêmio Jabuti para o coitadismo literário', por Marcelo Mirisola

 

Foto: New Africa/Shutterstock


Só Chico Buarque tem salvo-conduto para ser branco, heterossexual, mulherengo, rico, herdeiro e bem-sucedido


Li no último dia 10 uma notícia aparentemente irrelevante. Era sobre as inscrições para o Prêmio Jabuti 2022. O regulamento do concurso agora obriga o autor a declarar sua cor e condição sexual no ato da inscrição.

Ou seja, logo de cara, o Jabuti deixa evidente que o racismo e o sexismo são pré-requisitos e critérios de eliminação. Note que estamos falando de um prêmio literário. Não se trata de um concurso público no qual, talvez por questões relacionadas a políticas públicas, cotas possam fazer algum sentido. Tratamos de abstração. De subjetividade. De nuvens.

Já faz um bom tempo, antes da morte de Otavio Frias Filho, quando os jornais tinham alguma relevância, que fui procurado pela Folha de S.Paulo para resenhar o livro de Sergio Sant’Anna, o excelente O Conto Zero e Outras Histórias. Não era do meu feitio resenhar autores nacionais. Fiz meia dúzia de resenhas e o saldo não foi lá essas coisas. Errei mais do que acertei. Então, combinei comigo mesmo que Sant’Anna seria uma exceção diante dos ares pestilentos que a literatura brasileira contemporânea emanava à época. Pestilência que só piorou ao longo dos anos.

Prometi a mim mesmo que nunca mais resenharia livros de autores nacionais “supostamente vivos” e ávidos por “amizade”, chancela e reconhecimento. Mas isso foi antes do identitarismo carregado de racismo, sexismo e um monte de premissas no mínimo duvidosas, antes dessa praga se institucionalizar como critério de excelência literária. Vide as exigências de inscrição do Jabuti 2022.

Literatura não é cor de pele

E não é só o Jabuti! Veja os resultados dos principais prêmios “literários” nos últimos cinco anos. Prêmio São Paulo, por exemplo. Um certame que é custeado pelo dinheiro do pagador de impostos. Segue os mesmos padrões, só que preserva um certo verniz de isenção. E não é declaradamente racista e burro como o Jabuti.

Bato na mesma tecla há anos e apanho sem dó nem piedade. Na virada do milênio, escrevi que Dostoiévski não ia salvar nem curar a vida de ninguém. Muito ao contrário: é um magnífico destruidor de vidas. Venho afirmando que literatura não é assistência social e muito menos fator de inclusão. A não ser, é claro, no programa da Fátima Bernardes, na USP, na Unicamp, em Paraty e nos concursos literários afins.

Levi, homem branco, judeu e heterossexual, o sujeito que escreveu É Isto um Homem? e que escapou de Auschwitz não passaria nem pela inscrição do Jabuti

Literatura não é cor de pele, nem sexualidade, nem CEP e muito menos terapia. A “condição sexual” ou a “doença” ou as “mazelas” do artista, bem como suas supostas virtudes ou heroísmo são apenas meros acessórios, quando não passam de pretextos de manipulação. O escritor de verdade escreve apesar dos sintomas, do endereço, da condição social, da doença, da injustiça etc. Essa, claro, é minha opinião. O tema é abstrato. E nada impede você de pensar diferente, e trocar Tolstói por Carolina Maria de Jesus. Aí é contigo. Azar o seu.

Há mais de 20 anos que eu digo: leiam Primo Levi, o homem que passou pelo inferno dos campos de concentração nazistas. Ele escreveu um livro estupendo com o título: É Isto um Homem? Em nenhum momento ele teoriza a dor, nunca é autoindulgente. Levi não faz chantagens sentimentaloides, não se vitimiza e, sobretudo, não demonstra qualquer vestígio de ódio nem de revanche. Fala do ponto de vista da condição humana. Levi, homem branco, judeu e heterossexual, o sujeito que escreveu É Isto um Homem? e que escapou de Auschwitz não passaria nem pela inscrição do Jabuti.

Os heróis do coitadismo

Todavia, o coitadismo (incluído o racismo como porta-estandarte) é violento e ambicioso, e quer nos fazer crer que está acima do bem e do mal, acima da literatura. O coitadismo quer reescrever a história, adulterar o passado e determinar o futuro, está acima dos homens e acima de Deus. O coitadismo paira como uma nuvem maldita sobre aqueles que se atrevem a se manifestar por conta própria. E não vacila em aniquilar quem o ameaça. O coitadismo é ignorante e inclemente, bárbaro.

Um pobre-coitado em ascensão é uma máquina mortífera. E um pobre-coitado no poder é pior do que o pior dos tiranos. Mas tanto faz se ele se enquadra no primeiro ou no segundo caso. Nunca vai deixar de ser um pobre-coitado.

A propósito: onde está aquele menino do Vidigal, Geovani (dos Anzóis?), que logo em sua estreia foi aclamado como super-herói da “literatura de resistência”, e que tirou o fôlego e causou vertigens em Chico Buarque? Alguém lembra?

Ah, Chico, você é o cara, é o único da espécie que tem álibi e salvo-conduto para ser branco, heterossexual e comedor, rico, herdeiro e bem-sucedido. Tirando você, todos os outros branquelos são opressores e machistas. Ah, Chico, como se não bastasse, você ainda é talentoso, um baita sambista. Mas escritor, putz, só se for pras suas comadres e pra meia dúzia de vampiros e justiceiros sociais que se nutrem há décadas das alminhas dos enjeitados e pobre-coitadinhos. Vade retro.

Porque esse treco de literatura dá dinheiro, prestígio e fama. Se o cara souber aproveitar, vira santo, nome de colégio, estátua, enredo de escola de samba, presidente da República. Vira o diabo encarnado no Chico Buarque.

Bons tempos em que a subjetividade era o velocista e o juiz mais implacável e parcial de todos. Absolvia e condenava o jegue e o gênio com a mesma régua e destempero. A subjetividade era absurdamente injusta e parcial, mas ninguém contestava suas “regras”, e éramos obrigados a engoli-la. Simplesmente porque também éramos subjetivos e parciais, e tudo certo.

Até que a mal-afamada subjetividade foi substituída por critérios práticos e objetivos, critérios racistas e toscos — essa é a palavra: porque racismo disfarçado de coitadismo é algo muito tosco, e perigoso. A única diferença é que a falecida subjetividade era ensaboada e abjeta pela própria natureza, abstrata e incapturável. E racismo, ah, racismo é crime passível de aferição e de Prêmio Jabuti.


Marcelo Mirisola é escritor. Publicado pela Editora 34, é autor de mais de 20 livros — entre eles, Joana a ContragostoO Azul do Filho MortoBangalô e Como se me Fumasse

Leia também “A lavagem cerebral nas salas de aula”

Marcelo Mirisola, Revista Oeste