sexta-feira, 3 de setembro de 2021

"A guerra dos Smith", escreve Rodrigo Constantino

 

Personagem Smith, do filme Matrix | Foto: Reprodução


Passei a me referir aos “progressistas” como Smith, pois noto um comportamento semelhante ao do vilão do filme: eles odeiam o “sistema”, mas se aproveitam dele como parasitas


De acordo com Morpheus, tutor do protagonista Neo no filme Matrix, Smith é uma manifestação da inteligência artificial no mundo da Matrix, com poderes extraordinários para manipular o seu ambiente. Como todos os outros Agentes, ele foi originalmente programado para manter ordem dentro do sistema, exterminando programas e humanos que apresentam instabilidade na realidade simulada. Como parte dos poderes para cumprir a tarefa, ele e outros Agentes podem tomar o corpo de qualquer humano que seja parte da Matrix, transformando-o em uma cópia de si mesmo. Assim, pululam Smith por todo canto, todos iguais, indistinguíveis.

Smith tem um ódio aberto dos seres humanos e de suas fraquezas da carne. Ele compara a humanidade com um vírus, um organismo que se reproduz descontroladamente e, eventualmente, destrói seu meio ambiente. Ele diz que a inteligência das máquinas mantém os humanos em xeque. Ironicamente, Smith torna-se um vírus de computador, multiplicando-se até que ele tenha superado a Matrix inteira. Ao mesmo tempo, Smith desenvolve uma animosidade para com a própria Matrix, sentindo que ele é muito mais que um prisioneiro, diferenciando-se dos humanos, ele é encarregado de controlar a Matrix. Mais tarde, ele desenvolve um desejo imenso e cada vez mais aberto para a destruição de ambos os homens e as máquinas.

Passei a me referir aos “progressistas” como Smith, pois noto um comportamento semelhante ao do vilão do filme: eles odeiam o “sistema”, mas se aproveitam dele como parasitas; odeiam tanto ou mais os seres humanos, os reles mortais; há um toque niilista nas ideologias modernas, um desprezo pela humanidade; julgam-se ungidos ou iluminados e querem “empurrar a história”; e para tanto precisam de total controle sobre tudo e todos; buscam um poder desmedido, ainda que seja para destruir o mundo e colocar algo “novo” em seu lugar, criar o “Novo Homem”. Nossos Smith querem eliminar o próprio povo, considerado ignaro ou até fascista por esses “sábios”.

Em 1984, outra distopia, a tirania no controle cria o Ministério da Verdade, para impor sua Novilíngua. Tudo será invertido: guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. O Grande Irmão cuidava de tudo, mas havia um indivíduo incomodado. Seu nome: Winston Smith. Smith percebeu que não é fazendo ouvir a nossa voz, mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. O pensamento livre se faz necessário, contra o duplipensar imposto pelo sistema.

Por trabalhar no Ministério da Verdade, Winston sabia que a verdade oficial era bem diferente da real. Todas as profecias do Partido precisavam ser continuamente corrigidas, “jamais continuava no arquivo uma notícia, artigo ou opinião que entrasse em conflito com as necessidades do momento”. Nesse ambiente totalitário, o bom senso era a heresia das heresias: “E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão”. O controle das mentes era a meta. “A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre.”

Winston era curioso, fazia perguntas (a si mesmo), e perguntas incomodam aqueles que querem impor sua “verdade” oficial, sem questionamentos. Além disso, Winston se apaixonou, e naquele ambiente, até a união era um ato político. “Quando amas, gasta energia; depois fica contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que se sinta assim.” Afinal, se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão? O sistema espalhava o medo e o ódio, e “as crianças eram sistematicamente atiradas contra os pais, e ensinadas a espioná-los e a denunciar os seus desvios”.

Aparentar ortodoxia era mais fácil do que compreendê-la de fato. “De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão, permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.”

O tempo mostrou que o indivíduo foi capaz de derrotar o totalitarismo comunista

Além da incompreensão de suas “verdades científicas”, outro instrumento do sistema era o constante clima de guerra, pois a “consciência de estar em guerra e, portanto, em perigo faz parecer natural a entrega de todo poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência”. A ambição é globalista e totalitária: “As duas metas do Partido são conquistar toda a superfície da Terra e extinguir de uma vez para sempre qualquer possibilidade de pensamento independente”. E estava bastante evidente que tipo de pessoa controlaria este mundo:

“A nova aristocracia era composta, na sua maioria, de burocratas, cientistas, técnicos, organizadores sindicais, peritos em publicidade, sociólogos, professores, jornalistas e políticos profissionais. Esta gente, cuja origem estava na classe média assalariada e nos escalões superiores da classe operária, fora moldada e criada pelo mundo estéril da indústria monopolista e do governo centralizado. Comparada com os seus antecessores, era menos avarenta, menos tentada pelo luxo, mais faminta de poder puro e, acima de tudo, mais consciente do que fazia e mais decidida a esmagar a oposição”.

O poder era buscado pelo próprio poder, poder puro, não como um meio, mas um fim em si mesmo. “O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. O Grande Irmão é onipotente, o Partido é infalível, e para tanto é preciso controlar o passado, a memória, e haver uma incansável flexibilidade, de momento a momento, na interpretação dos fatos. Mas Smith continuava acreditando no indivíduo: “Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo”.

George Orwell não criou um final feliz para seu Smith, inspirado nos horrores soviéticos, mas o tempo mostrou que o indivíduo foi capaz de derrotar o totalitarismo comunista. Para tanto, porém, é necessário tomar a pílula vermelha da verdade amarga, e não a azul da ignorância abençoada. A pílula azul permitirá que você esqueça o que aconteceu e permaneça na realidade virtual da Matrix, enquanto a vermelha o libertará dela e o conduzirá ao mundo real. Este não é um céu de brigadeiro, uma maravilha idealizada por intelectuais entediados. Tampouco é confortável, com a responsabilidade delegada a ungidos. É duro, imperfeito, repleto de riscos e incertezas. Mas tem vida. Tem, acima de tudo, liberdade!

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Revista Oeste