Secretário da Educação de São Paulo diz que a situação dos estudantes brasileiros chegou a um 'porão embaixo do fundo do poço' com as escolas fechadas pela pandemia
Gaúcho de Santiago, Rossieli Soares, secretário de Educação de São Paulo, morou em tantos lugares que seu sotaque se perdeu em alguma esquina entre a Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, onde fez mestrado, a Secretaria da Educação do Amazonas, que comandou por quatro anos, e o Ministério da Educação, em Brasília, que deixou em 2018 para atender ao convite de João Doria. Pouco depois de completar um ano no cargo, seus planos foram atropelados pela pandemia de covid-19. Assim como quase tudo, as instituições de ensino fecharam as portas em março de 2020.
Desde que ficou provado que as escolas não são foco de transmissão do coronavírus, Rossieli tornou-se no governo um cavaleiro (quase) solitário na luta pela volta das aulas presenciais. Seus principais adversários são as fake news sobre o assunto — muitas disseminadas pela imprensa — e sindicatos de professores reduzidos a usinas de exigências descabidas, inviáveis ou decididamente insanas. As imposições começaram com a inclusão da categoria entre os grupos prioritários de vacinação e continuaram com a vacinação integral de 100% dos professores. Ambas as reivindicações foram atendidas. Agora, os queixosos condicionaram o retorno das aulas à imunização de todos os estudantes com mais de 12 anos, medida não adotada por nenhum país. “Nossa relação com o sindicato dos professores não está nem melhor nem pior. Ela simplesmente não existe”, resume Rossieli. “Eles são radicalmente contra o retorno das aulas presenciais e não aceitam negociar. Eu sou radicalmente a favor. E não aceito negociar.”
Confrontado com o que considera “uma catástrofe semelhante a um pós-guerra”, Rossieli procura motivos de otimismo em soluções paliativas. Por exemplo, ampliar o número de escolas que funcionam em tempo integral para minimizar “o porão no fundo do poço” em que se encontra a educação brasileira. Quando as escolas deveriam ter sido reabertas? Antes de responder, esse homem alto, de óculos com aros grossos, que intercala nas redes sociais assuntos educacionais com declarações de amor à mulher, solta um suspiro. “Se pudesse voltar no tempo, jamais teria fechado as escolas.”
Confira os melhores momentos da entrevista.
Como está a expectativa para o segundo semestre? As aulas presenciais serão retomadas em todas as escolas?
Minha principal expectativa é que haja uma mudança de mentalidade. Houve muita fake news sendo espalhada, inclusive por parte da imprensa. Nunca houve, por exemplo, grande contaminação entre crianças e adolescentes, mas inúmeras notícias sobre isso foram divulgadas, principalmente no começo deste ano. No segundo semestre ainda teremos uma regra de distanciamento, que vai diminuir de 1,5 metro para 1 metro, mas não existirá restrição quanto à quantidade de alunos em sala de aula. Com isso, muitos colégios poderão voltar em agosto com 100% da capacidade. Mas a obrigatoriedade só será discutida em setembro.
Por que a quantidade de alunos que optaram pela volta presencial foi menor que a esperada?
Atribuo isso à quantidade de fake news que acabam ganhando destaque nos jornais. Por exemplo, um estudo que diz que com a volta às aulas 1 milhão de crianças e jovens vão morrer ou “especialistas” que põem em dúvida o protocolo de segurança contra a covid nas escolas. Isso é um fator. Outra coisa é o escalonamento por rodízio. Muitos pais não acham que compensa levar os filhos à escola só um ou dois dias por semana. Querem a volta da rotina completa. Os sindicatos dos professores também não ajudam. Não tivemos uma única reunião com eles sobre volta às aulas. Eles simplesmente não aceitam. E não falam um “não” com argumentos. É simplesmente um “não” irresponsável. No começo da pandemia, diziam que seguiriam os protocolos da Organização Mundial da Saúde [OMS]. Quando a OMS disse que a primeira coisa que deveria reabrir eram as escolas, eles já não usaram essa referência. Fomos o primeiro Estado a vacinar professores com 47 anos ou mais, e agora já vacinamos quase todos os professores pelo menos com a primeira dose. Agora, eles condicionam a volta à vacinação de jovens com mais de 12 anos. Isso não existe. É um absurdo. Está provado que crianças não são um vetor de transmissão nem apresentam sintomas graves da doença.
Pelo que foi percebido empiricamente, as escolas são um foco de transmissão do coronavírus?
Não são. Temos centenas de estudos sérios no mundo falando sobre isso. Se você pegar cidades que nunca voltaram com as aulas presenciais, os indicadores de transmissão são iguais ou maiores que os dos lugares que reabriam as escolas. Os casos de contaminação envolvendo professores, alunos e funcionários não aconteceram dentro da escola, mas em casa, restaurantes, festas de família.
Como a educação paulista vai chegar ao fim da pandemia?
A situação é muito difícil, tanto da rede pública quanto da rede privada. As crianças não só não estão absorvendo conhecimento, como não estão consolidando o que aprendem. O processo será longo e complexo. Precisamos avançar e, ao mesmo tempo, ensinar o que ficou para trás. A gente mal conseguiu fazer o básico do básico do básico. Nossa preocupação principal foi manter o vínculo com a escola. Em muitos lugares do Brasil, as crianças praticamente não tiveram aulas nos últimos dois anos. Nós temos de enfrentar uma catástrofe e olhar como se fosse um pós-guerra. Se não enxergarmos dessa forma, o Brasil não conseguirá voltar ao que era antes da pandemia.
Como é possível superar essa situação?
Todos os países que enfrentaram situações de pós-guerra só superaram as dificuldades investindo em educação. Deveríamos estar discutindo hoje um pacto em torno da educação, aumentando as escolas de tempo integral, investindo em recuperação, cuidando do psicológico dessas crianças, incluindo as famílias e investindo em tecnologia — mesmo sabendo que a presença do professor é insubstituível. É um esforço como sociedade. Este ano, 2022, 2023, acredito que até em 2024, estaremos sentindo os efeitos dessa paralisação.
“Alguns estudos falam em evasão de 35%. Ou seja, um terço dos estudantes não vai retornar à escola. Isso é uma catástrofe”
Quando as escolas poderiam ter reaberto?
Com o conhecimento que tenho hoje, com o que a ciência mostrou, sabendo que as crianças não são fatores de transmissão nem apresentam sintomas graves, se pudesse voltar no tempo, jamais teria fechado as escolas.
Quem determina quando as escolas devem ou não reabrir?
Dialogamos muito com a área da saúde. Eles não questionam a transmissão na escola em si, mas no transporte público usado por quem vai para a escola e na movimentação de pessoas que envolve a reabertura. Hoje, não temos dificuldades com os especialistas do Centro de Contingência. O que mais nos prende são as fake news. No ano passado, as eleições municipais prejudicaram muito, porque diversos prefeitos impediram a reabertura das escolas.
A politização do tema prejudicou muito?
Muitas vezes não conseguimos ter uma discussão técnica justamente por causa dessa politização do tema. A pergunta sempre foi errada. O certo não é perguntar se devemos ou não voltar às aulas, mas o que tenho de fazer para que as aulas voltem. A sociedade deveria olhar para mim e dizer: “Secretário, o que é preciso fazer para que as aulas voltem?”. Em vez disso, especialmente os sindicatos fizeram pressão para a não volta. A consequência está aí: somos um dos países que mais demoraram para reabrir as escolas.
Um dos receios do senhor é a evasão escolar depois do retorno das aulas presenciais. O governo trabalha com alguma estimativa?
É difícil quantificar. Se você pegar os dados estatísticos oficiais no ano de 2020, a evasão foi a menor da história, mas isso não significa muita coisa, porque sabemos que não é um retrato da realidade. O currículo tem de ser mais atrativo. Sabemos que um estudante do ensino médio está focado em empregabilidade, porque tem gente passando fome na família dele. Então, que escola é essa que vamos entregar? As mães de alunos do ensino infantil e fundamental estão loucas para que os filhos voltem para a escola para poderem sair para trabalhar, mas nas séries maiores isso nem sempre é uma realidade. Alguns estudos falam em evasão de 35% (em condições normais, o índice gira em torno de 10%). Ou seja, um terço dos estudantes não vai retornar à escola. Isso é uma catástrofe.
As reais consequências dessa evasão serão sentidas quando?
Mais rápido do que se imagina. O Brasil já tem um triste cacoete de não falar como o investimento em educação impacta a economia. Num curto prazo sentiremos o impacto na empregabilidade. Os “nem-nem” (nem estudam nem trabalham), que já são em grande número, vão aumentar. O que faremos com esses jovens? Isso vai pesar na economia. Precisaremos usar 2022 para recuperar o que for possível.
A relação com o sindicato dos professores está melhor?
A gente não brigou. Nós simplesmente não nos falamos mais. A questão sobre retorno às aulas, por exemplo: eles são radicalmente contra e não aceitam negociar. Eu sou radicalmente a favor. E não aceito negociar. Enquanto nenhum dos lados ceder, e eu não vou ceder, não há o que negociar. Não aceito falar de volta às aulas só depois da vacinação de crianças. Nenhum lugar do universo fez um negócio desses. Todas as atividades essenciais foram mantidas na nossa sociedade. Educação, se é essencial, tem de ser mantida.
Como foi o impacto da pandemia e do fechamento das escolas no psicológico dessas crianças e adolescentes?
Meu filho teve um caso muito grave de depressão. Chegamos ao limite do limite. Todas as pesquisas têm mostrado que os casos de doenças mentais e depressão tem aumentado estratosfericamente. Esse já era um problema grave antes da pandemia. Neste momento, em maior ou menor grau, todos os jovens apresentaram perda de equilíbrio emocional.
O senhor disse que havíamos chegado “abaixo do fundo do poço”. Existe alguma esperança?
No fundo do poço nós estávamos há dois anos, antes da pandemia. Agora, estamos indo para um porão embaixo do poço. Mas, mesmo com tudo isso que estamos sofrendo, a educação deu alguns saltos importantes. São oportunidades: a aproximação da família com a escola, famílias que começaram a enxergar a educação com mais atenção. Também aceleramos em décadas o aprendizado de como usar a tecnologia na educação. Foi um salto gigantesco. Precisamos ter mais equipamento, velocidade, capacitação, mas de qualquer forma é uma boa notícia. Muitos profissionais de educação também estão incomodados e querem recuperar as perdas. Diversas vezes no Brasil começamos com um monte de mi-mi-mi e não focamos o que é essencial. Agora, mais do que nunca precisamos focar o essencial, o que é básico, a alfabetização. Isso dá resultado. Mas para isso precisamos de todos. É preciso haver um pacto nacional. A esquerda e a direita podem brigar no campo político, mas tinham de fazer um pacto pela educação. Precisamos disso não apenas para os próximos dois anos, mas para as próximas décadas.
Revista Oeste, por Branca Nunes