Uma ditadura sexagenária pode ter começado a agonizar no outono caribenho
Estou há seis dias em Havana fazendo o que faz desde janeiro de 1959 todo jornalista que desembarca em Cuba atraído pela promessa de um encontro com Fidel Castro: esperando El Comandante aparecer. Quem conhece os hábitos de Fidel sabe que é melhor esperar sentado. Nenhuma entrevista tem dia e hora marcados. Ele aparece de repente, quando lhe sobra um tempo ou quando lhe dá na telha. Além dos 12 jornalistas, aguardam a aparição 28 deputados paulistas. Chegamos domingo, 13 de dezembro de 1987, no avião da Vasp que inaugurou a rota São Paulo-Havana. A ideia será testada por três meses com um voo por semana. Se a taxa de ocupação de assentos for satisfatória, a decolagem na capital paulista e o pouso na capital cubana livrarão os passageiros de viagens dramaticamente alongadas por escalas e desvios. As curvas no caminho são desesperadoras até para comunistas brasileiros que leram O Capital no berçário. Em alemão.
Nesta noite de 18 de dezembro, uma sexta-feira, faltam só 48 horas para o embarque de volta ao Brasil. O Homem até agora não deu as caras, mas o diplomata escalado para acompanhar-nos segue repetindo o que recitou assim que pisamos no asfalto da pista do aeroporto: “O Comandante gostou muito da ideia de conversar com vocês. Vai aparecer a qualquer momento”. Desde 1º de janeiro de 1959, quando Fidel e seus guerrilheiros entraram triunfalmente em Havana, não foram poucos os que voltaram sem ver a figura mitológica. É verdade que gosta de conversar. Mas gosta tanto que a fila de espera não cabe numa agenda. Como a fila não anda, os enfileirados se distraem mudando de lugar. No primeiro dia em Havana, esperei no saguão do Hotel Riviera. Neste sexto dia em Cuba, espero no salão imenso do Ministério das Relações Exteriores, palco da recepção oferecida pelos gerentes da ilha caribenha.
Na terça, por exemplo, passei a manhã esperando na piscina com ondas e água salgada que vira doce, outro requinte do hotel construído pela máfia de Miami e inaugurado em meados de 1958, pouco antes da derrocada da ditadura de Fulgencio Batista. Estou pensando no que teria acontecido aos que garantiram aos chefões que Cuba continuava sob controle quando me bate a ideia de jerico: subir as curvas da escada que terminava no trampolim a 10 metros da superfície. Vista daquela altitude, a piscina parecia menor que o tanque de lavar roupa da minha avó. Decidi saltar assim mesmo, para não fazer feio aos olhos de algum companheiro de viagem que estivesse contemplando a minha escalada. Sentado não vai doer, presumi. Fui desmentido pela colisão com o paredão azul que me deixou descadeirado. Nadei no estilo cachorrinho até a borda. Aliviado com a constatação de que ninguém testemunhara aquele mau momento, aguardei que o quadril se recuperasse do encontro com as águas e fui almoçar.
Resolvi passar a tarde esperando Fidel nos dois restaurantes mais conhecidos da ilha, La Bodeguita del Medio e La Floridita, caprichando na pose de Ernest Hemingway aos trinta e poucos anos. Em homenagem ao escritor que bebeu todas quando morou por aqui, tracei meia dúzia de mojitos no bar do primeiro e oito papa dobles no bar do segundo. Retomei a espera na piscina do hotel quando comecei a ver a miragem duplicada do Comandante. Na quarta-feira, esperei quatro horas na fila da sorveteria Coppelia até chegar ao balcão e pedir o famoso sorvete de limão que tinha acabado duas horas antes. Consolei-me com o de abacaxi, que não me pareceu grande coisa. Na quinta, de volta ao bar do La Floridita, descobri que a capital cubana se tornara um grande cenário de filme de época. No fim dos anos 80, não saíra dos 50, informavam o casario implorando por pintura, os garotos que oferecem aos turistas rum, charutos ou a irmã, sobretudo os carrões norte-americanos sacolejando pelas ruas.
Cinco minutos mais tarde, a porta se abre e ELE finalmente aparece
O garçom me contou que qualquer um podia ser usado como táxi. Era só pagar 1 dólar e dizer o destino. Fossem quais fossem o trajeto e a duração da corrida, o preço seria o mesmo. Paguei a conta e fui conferir. Estendi o braço ao ver um um Studebaker verde-limão, o motorista encostou na calçada. O garçom não estava brincando. Nas três horas seguintes, pela módica quantia de 5 dólares, esperei Fidel no banco do copiloto daquele Studebaker, de um Oldsmobile vermelho em estado aceitável, de um Mercury preto implorando por oficinas mecânicas, de um Chevrolet rabo de peixe azul e do Buick de cor indefinida que me devolveu ao hotel. Acordei no começo da tarde seguinte sem saber em que ano estava. E agora espero Fidel naquele salão de dimensões amazônicas, pensando o que pensa todo estrangeiro sem algemas ideológicas ao topar com uma tremenda boca-livre bancada pela ditadura cubana: se o povo visse isto aqui, o regime comunista não chegaria à sobremesa.
Extensa, espessa e sólida como um píer escocês, a bancada do bufê suporta um tsunâmi de lagostas, camarões, siris e caranguejos de filme de ficção científica, mariscos e ostras, cardumes de peixes de espantar o protagonista de O Velho e o Mar. Aquilo parece banquete patrocinado por um Nero de cinema. E então tropeço na mais espantosa visão desde o momento do desembarque: tem até gente gorda. Os razoavelmente obesos, os medidos em arrobas, barrigudos de pernas finas, ou com pernas mais largas que o ventre de bom tamanho. Há seis dias zanzando por Havana, só vi gente magra. O governo jura que ninguém morre de fome. Pode ser. Mas também é verdade que nenhum cubano comum come o suficiente para matá-la. Isso é para quem frequenta recepções oficiais. Contemplo uma lagosta abraçada a dois camarões quando me bate a certeza: todos os gordos da ilha estão aqui.
No momento em que tento saber como é que explicam a um magro curioso aquelas toneladas excedentes, flutua sobre o oceano de cabeças o aviso multiplicado por centenas de vozes: “É ELE!”. ELE é Fidel; quem mais poderia ter o prenome berrado em maiúsculas por tanta gente? Junto-me aos parceiros de momento histórico e vamos todos para uma sala com quatro poltronas e dois sofás de bom tamanho. Percebo que alguns terão de ficar em pé e capturo uma poltrona. Cinco minutos mais tarde, a porta se abre e ELE finalmente aparece. Aos 61 anos, no poder havia 28, a figura emoldurada pela soleira traja uma farda verde-oliva bem cortada e parece em ótima forma. Levanto-me para cumprimentar Fidel e constato que nossos queixos se alinham na mesma altitude. ELE tem, portanto, de 1m85 a 1m87, incluindo o salto carrapeta do coturno preto. Só alcança os míticos 2 metros de altitude aos olhos apaixonados dos devotos. A expressão satisfeita e o olhar confiante confirmam que o ditador adora o que faz e pretende manter o emprego enquanto viver. Também se tornou mais cauteloso, sorrio ao conferir o cinto paisano: não há nenhum vestígio de coldres e armas.
Fidel Castro aprendeu que não se deixa impunemente uma arma de fogo ao alcance de jornalistas brasileiros naquela noite de abril de 1960, quando a lenda em seu começo chegou com algumas horas de atraso à embaixada do Brasil em Havana. Todos empunhando copos ou garrafas, ali o esperavam o embaixador Vasco Leitão da Cunha, que organizou a recepção, Che Guevara, escalado pelo chefe para distrair os visitantes, o recentíssimo amigo de infância Jânio Quadros, figurões do janismo e jornalistas que cobriam a visita a Cuba do candidato à Presidência da República. No corredor da embaixada, Fidel fez uma derradeira escala no lavabo para deixar sobre a caixa da descarga o cinto com o revólver no coldre que completava o uniforme de guerrilheiro. Entrou na sala de jantar falante e feliz. Só deu a conversa por encerrada no meio da madrugada. Um dos últimos a retirar-se, embarcou num jipe pilotado pelo ajudante de ordens e desapareceu na noite. Reapareceu às 5 da manhã para buscar o que esquecera no lavabo. E então descobriu que o cinto não estava mais lá. Nem o coldre. Nem o revólver.
O jornalista Villas-Boas Corrêa, que testemunhou a cena, resumiu num artigo no Jornal do Brasil a reação de Fidel. “Ele perde a calma, insiste na busca. A criadagem é acordada. Ninguém vira ou tinha notícia da pistola que, segundo Fidel, o acompanhava desde Sierra Maestra, uma mascote que era parte da sua vida.” À beira de um ataque de nervos, a vítima suspendeu as buscas e foi tentar dormir. Mas não se renderia, conta Villas-Boas Corrêa: “Compareceram à embaixada, horas depois, o comandante Raulito Diaz Argueille, chefe do Birô de Investigações, e o capitão Chino Figueiredo, do serviço secreto, reclamando a lista com os nomes de todos os que compareceram à recepção e deixando claro que Fidel exigia a devolução da arma no prazo de 24 horas”.
Teria de esperar o dobro. Só depois de 48 horas o arquiteto da molecagem procurou Leitão da Cunha para propor o acordo: ele devolveria o produto do roubo desde que o alvo da audácia jamais soubesse quem fora o algoz. O embaixador levou o segredo para o túmulo. Apenas contou a dois ou três amigos que se surpreendera com a inscrição na plaqueta de ouro incrustada no cabo do revólver: “Ao herói do povo cubano, a amizade de Anastas Mikoyan”. Fidel mentira de novo. Aquele parabélum russo, um presente do então ministro das Relações Exteriores da União Soviética, desembarcara na ilha pouco antes do incidente — e não tinha a menor ideia de onde ficava Sierra Maestra. A História não registrou a identidade do jornalista brasileiro que conseguiu o que tantos norte-americanos poderosos tentaram em vão: desarmar Fidel.
O passeio por 1960 é interrompido pela voz que anuncia o início de un rato de charla. Um dedo de prosa com Fidel não dura menos que duas horas. Tivemos direito a quase três. Sem o socorro de aparelhos de som que engrossam o timbre de contralto, soa esganiçada a voz que ecoava desde 1959 nos intermináveis comícios na Praça da Revolução. Naquela noite, a usina de autoconfiança desancou a ganância desumana do Grande Satã ianque, atribuiu o desempenho bisonho da economia ao bloqueio decretado pelos EUA, celebrou os resultados do esforço destinado a atrair mais turistas estrangeiros, elogiou o sistema de saúde, louvou o êxito do sistema de educação e deixou claro que só a morte o afastaria do coração do poder. Nascido em agosto de 1926 numa família de latifundiários, o advogado Fidel Alejandro Castro Ruz chegara lá com 32 anos. Decidiu os destinos de Cuba até 2008, quando passou oficialmente ao irmão Raúl o bastão de mando. Mas só com a morte, em 2016, deixaria de exercer o direito à palavra final.
Os participantes daquela entrevista na Chancelaria não poderiam imaginar que o Muro de Berlim só duraria mais dois anos, que a URSS seria dissolvida em 1991, que secaria a fonte de mesadas que garantira nos 30 anos anteriores a sobrevivência de Cuba, que na virada do século o patrocínio da ilha seria assumido pela Venezuela bolivariana — e se estenderia por quase 20 anos. Sempre foi impossível antecipar as espantosas proezas do líder que começou a revolução em 1956, ao desembarcar numa praia cubana com outros 81 combatentes. Estavam à espera do grupo tropas de Batista. Os 12 sobreviventes conseguiram refugiar-se na Sierra Maestra. Menos de três anos depois, o mundo se emocionou com as imagens dos jovens barbudos entrando na capital cubana pendurados em jipes e tanques, decididos a dar um jeito em problemas amedrontadores.
Havia em Cuba uma ditadura a sepultar, havia uma economia asfixiada pela monocultura da cana implorando pela diversificação e havia prostitutas demais em Havana. Neste julho de 2021, milhares de cubanos que lutam nas ruas pela liberdade democrática terão de retomar a missão portentosa. Há prostitutas demais em Havana, um oceano de canaviais no caminho da modernidade econômica e uma ditadura sexagenária a derrubar. O regime caquético terá alguns anos de sobrevida. Mas os atos de protesto deste julho, engrossados por multidões de jovens, podem ter antecipado para o outono caribenho a surpreendente anunciação da primavera.
Revista Oeste