domingo, 29 de dezembro de 2019

"Brutos", por Marcos Lisbos

Shakespeare utilizava os temas de um passado idealizado para entreter e provocar os seus contemporâneos.
“Júlio César” pode não ser uma das suas melhores peças, mas o terceiro ato é memorável. César ignorara a profecia de um adivinho e foi esfaqueado nos idos de março por senadores liderados por Brutus, filho de sua amante.
O assassino afirma à multidão que amava César mais do que qualquer outro cidadão, apenas amava Roma mais ainda. “Vocês prefeririam César vivo e morrer todos escravizados, em vez de César morto e todos os homens livres?”
 
Óleo sobre tela retrata o escritor inglês William Shakespeare - Reprodução
 
Brutus permite que Marco Antônio fale em seguida, desde que somente para ressaltar as virtudes do ditador morto, sem culpar seus assassinos. O fiel amigo de César teve uma vida conturbada, mas Shakespeare resolveu redimi-lo com um discurso surpreendente, em que elogia Brutus enquanto o conduz sutilmente ao cadafalso com a engenhosidade das palavras.
“Eu vim para enterrar César, não para exaltá-lo. O mal que os homens fazem sobrevive depois das suas mortes; o bem é frequentemente enterrado com seus ossos.” 
“Brutus é um homem honrado”, repete à exaustão Marco Antônio, que, portanto, deveria estar certo sobre a ambição desmedida de César. No entanto, continua, trata-se do mesmo César que foi fiel aos amigos, cuidou dos mais pobres e  recusou o convite para se tornar imperador de Roma. 
Marco Antônio homenageia César enquanto denuncia a vileza de Brutus. Nos tempos atuais, porém, a arte, seja o drama ou a comédia, parece ofender tanto quanto as guerras.
Os novos brutamontes acharam inaceitável a farsa dos comediantes do Porta dos Fundos sobre um Jesus seduzido pelos prazeres da carne, ainda mais por um amor que não ousa dizer seu nome. Eles poderiam ter reagido com ironia, afinal o filme não é bom, mas optaram por atirar coquetéis molotov e quase causaram um incêndio.
Shakespeare morreu no começo do século 17, mesma época em que nasceu Jean-Baptist Poquelin, mais conhecido como Molière. O dramaturgo francês não dominava a técnica como o bardo inglês, porém sabia como poucos a arte da irreverência. Molière ridicularizou os cacoetes da elite, para deleite da plateia, e criou personagens hipócritas ambiciosos disfarçados de piedosos, enfurecendo os religiosos.
O absolutismo do seu tempo não permitia enterrar atores nas áreas consagradas dos cemitérios. O rei Luís 14 pelo menos consentiu que Molière fosse enterrado ao lado das crianças que não haviam sido batizadas. Segundo a lenda, Marco Antônio cedeu seu manto mais valioso para cobrir o corpo de Brutus, que se suicidara.
A barbárie deveria ficar confinada às peças de teatro.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia

Folha de São Paulo