terça-feira, 13 de novembro de 2018

"Soldados da pátria ou soldados da corte?", por Fernão Lara Mesquita

Claro e assertivo quanto a tudo o mais, Jair Bolsonaro entrou em cena dando parte de fraco e pedindo menos que Temer na questão crucial da previdência. Cedido o espaço, vieram cheios de óleo nas curvas os discursos de “comemoração dos 30 anos da Constituição” que teve de ouvir ao vivo terça passada no Congresso. Foi um evento dos derrotados, em que as mais altas patentes da “privilegiatura” advertiram os vencedores da eleição, em nome da “proteção à democracia”, da intocabilidade do documento onde estão inscritos os seus “direitos adquiridos”. E enquanto tratavam de convencer-nos de que esses 65 mil mortos são só ilusão, estamos todos vivendo numa sociedade “justa, livre e fraterna graças à Constituição cidadã”, já estavam com o dedo no gatilho para disparar o acinte dos 16,38% na hora mais escura da miséria do Brasil.
Mais de uma vez deram a imutabilidade da Constituição americana como exemplo. É fake. Os americanos fazem uma distinção essencial entre “direitos negativos” e “direitos positivos”, que já passou da hora de os brasileiros colocarem no seu radar. Direito negativo é o que proíbe uma pessoa ou entidade - o governo em especial - de agir contra o beneficiário dele. Direito positivo é o que obriga outra pessoa a agir para que o beneficiário possa desfrutá-lo. A Constituição federal americana baseia-se exclusivamente no direito negativo, por isso é tão sucinta. Ela define o que o governo está proibido, e não o que está obrigado a fazer. Ocupa-se de descrever o que é cada um dos três Poderes e quais os seus limites, assim como o que é a federação e como deve ser a relação entre os Estados e deles com a União. 
Estabelecidos os sete artigos, entretanto, os constituintes de 1787 começaram a forçar a introdução de emendas para definir outros direitos. A lista começou com as liberdades individuais (de religião, de palavra, de imprensa, de se reunir em assembleia, de ter e usar armas, de ter um julgamento justo por um júri de iguais, etc.). Cada convencional queria inscrever mais um. Foi então que a corrente dos federalistas argumentou que essa lista, por definição, jamais seria completa, e se fossem inscrever todo e qualquer assunto na Constituição, além de aumentar desmedidamente o poder do governo central, acabariam por inviabilizar o uso dela como instrumento de governo. Ficou estabelecido então, pela 9.ª Emenda, que tudo o que não estava expressamente proibido até ali eram direitos que “pertencem ao povo, ou aos Estados”. 
É nas Constituições estaduais, mais próximas das pessoas que das instituições, que eles inscrevem os direitos econômicos, sociais ou culturais da esfera dos direitos positivos. Como cada direito positivo dado a alguém cria um encargo para os demais, o que de alguma forma viola o seu direito negativo que é o de não ser “invadido” de forma nenhuma, nas democracias de verdade eles só podem ser criados por consentimento expresso, ou seja, por um contrato social. O direito positivo criado sem consulta a quem vai pagar a conta é o espaço do populismo e do seu resultado prático, que é a “privilegiatura”. Daí haver, lá, decisão no voto obrigatória de toda medida que crie um direito positivo, e tão poucos com que os consultados concordem em arcar. E mesmo para estes fica sempre aberta a hipótese de reconsideração se a conjuntura se alterar. 
Não são nem um pouco “pétreas” as Constituições estaduais americanas. Ao contrário, todas incluem mecanismos até para forçar revisões periódicas. Tipicamente, uma consulta obrigatória aos eleitores a cada dez anos, de carona nas eleições, sobre se desejam ou não uma revisão naquele momento, a ser redigida por uma constituinte exclusiva e referendada no voto pelo eleitorado do Estado inteiro.
No Brasil de 1988 ocorreu o inverso. Nossa Constituição é um rol de 250 artigos e mais de 107 emendas, todos escritos por políticos que vivem de votos, distribuindo “direitos positivos” sem consultar ninguém, dos quais os únicos concretamente exigíveis são os que contemplam a mesma casta diminuta à qual eles próprios pertencem. Foi o que nos pôs onde estamos e de onde não sairemos enquanto não a reformarmos, tema que terá de voltar à pauta nacional logo adiante.
A emergência do momento, no entanto, são as previdências, no plural, sendo o caso da pública 30 vezes mais agudo que o da privada. A reforma que elas exigem é a de que o Brasil precisa para continuar vivo e, se for justa o bastante, parar de andar para trás. E a única escolha que há é fazê-la com a razão ou entregar a tarefa ao caos.
É recorrente a contradição que paralisa os servidores de carreira que passam, de repente, para o Poder Executivo, ou seja, da condição de parcela à de responsável pelo resultado inteiro da conta da falência nacional. Graças à Constituição que querem imutável, falta-lhes, como profissionais ou como cidadãos, a experiência de “reduzir” o que quer que seja, em que é especializado o resto dos brasileiros, já que, sejam quais forem as condições de temperatura e pressão aqui fora, seu salário sobe por decurso de prazo e eles continuam dispensados de cogitar da mais remota hipótese de perder o emprego. Como, então, enfrentar os companheiros de corporação para denunciar como privilégio tudo aquilo que até ontem defendiam ombro a ombro com eles como “justíssimas conquistas”?
Eis a questão.
Com as finanças de sete Estados no chão e as de quase todos os outros prestes a morder o pó com eles, o presidente, porém, não pode dar-se esse luxo. Só a verdade o libertará. Se encarregar seu ministro de dar a conhecer ao Brasil a quem corresponde cada parcela do problema que o País terá de enfrentar, a única resposta certa se imporá por si. Faria bem o presidente se, em vez de resistir, liderasse a corporação que com ele se apresenta como reserva moral da Nação a dar um exemplo de desprendimento, abrindo a fila da devolução de privilégios. Se fizerem isso, não existe a hipótese de os que forem brasileiros deixarem de segui-los.
JORNALISTA
O Estado de São Paulo