No começo desta semana, um grupo seleto de investidores reunidos em Nova York ouviu em inglês de um integrante do “núcleo duro” do futuro governo que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, quer mesmo aplicar um choque liberal na economia brasileira. Quer privatizar 100 de 160 estatais. Leiloar bons contratos para interessados em investir em infraestrutura. Reformar um sistema tributário caro. Priorizar, acima de qualquer coisa, o ajuste fiscal. E mudar o comércio exterior, no sentido de maior abertura.
Não, não era Paulo Guedes falando. Era o vice-presidente Hamilton Mourão. Combinam as ideias representadas por Guedes com a cabeça de quem passou mais de 30 anos pela formação de escolas militares, como são todos os oficiais envolvidos de uma forma ou outra com o novo governo? Pelo jeito, parece que sim. Mourão descreveu para os investidores em Nova York como “um bom negócio” a fusão da Embraer com a Boeing (chamada de “entreguismo” pelo retrógrado pensamento de esquerda no Brasil).
Na mesma ocasião, Mourão ecoou também o que o seu antigo chefe, o comandante do Exército, disse em várias entrevistas, a mais recente delas ao correspondente no Brasil do Financial Times – uma das mais influentes publicações internacionais e uma das poucas a não cair na narrativa de que o Brasil estaria elegendo uma nova ditadura militar. Os militares não vão se meter em política, garantiu o general Villas Bôas.
Mas em política eles estão profundamente mergulhados. Atuaram em dois momentos nevrálgicos – a possível concessão de habeas corpos a Lula no STF e nos momentos seguintes ao atentado contra Jair Bolsonaro – para evitar o que chamam de “ameaça de caos social e político”. Temiam uma bagunça generalizada, e a possível rebeldia de coronéis. Vários integrantes dos altos escalões penduraram a farda, vestiram o terno e foram para posições estratégicas (do ponto de vista político sobretudo) no governo. Alguns oficiais generais de farda participaram ativamente nos bastidores da campanha do presidente eleito. Embora a instituição das Forças Armadas não esteja oficialmente metida em política, a teia de relacionamentos profissionais e pessoais entre os “de fora” e os “dentro” do governo é de enorme coesão.
Relevante aqui, portanto, é saber o que eles pensam, e qual é o País que querem. A caricatura grotesca tem ocupado muitas vezes o lugar da análise, e a caricatura dos militares parados na década dos 1970 com a mentalidade de estatismo, autarquia e segurança nacional entendida em sentido muito estrito cedeu lugar para a convicção, entre os militares, de que soberania nacional é o resultado de economia forte e razoavelmente aberta, e que não há automatismos ou subordinações claras em alianças externas, sobretudo em relação às que prometam acesso a tecnologias e geração de conhecimento.
Há mais um aspecto político do papel dos oficiais militares: muitos comandantes viram na onda que levou Bolsonaro ao Planalto um freio no que eles chamam de “esquerdização” da sociedade brasileira. Nesse sentido, o olfato político dos militares que dizem não se meter em política parece ter sido muito melhor do que a “sabedoria” de políticos profissionais. Eles enxergaram cedo que ordem, segurança, hierarquia e honestidade – valores que boa parte do eleitorado identifica com militares – ajudariam a eleger Bolsonaro.
O problema está na frase pronunciada em tom de brincadeira pelo General Heleno, um dos nomes de maior prestígio em todo o estamento militar. “Se esse troço aí (o governo Bolsonaro) der errado, a única coisa boa da minha geração foi ter visto o Pelé jogar”, disse Heleno.
O Estado de São Paulo