domingo, 25 de novembro de 2018

"Barricadas em Paris são normais, estranho é Macron desabar", por Vilma Gryzinski

O que aconteceu com Emmanuel Macron? Há apenas um ano e meio, ele foi eleito presidente com 66% dos votos.
Mais impressionante ainda, conseguiu a maioria parlamentar de um partido novo, criado praticamente do nada só para bancar as reformas que prometia, criando um clima de otimismo e entusiasmo.
Se hoje tem alguém entusiasmado, basta dar uma volta pelas “manifestações de sábado à tarde” e se engasgar com o gás lacrimogêneo ou os gritos que dispensam tradução: “Macron, démission”.
Os “coletes amarelos” usam o equipamento de segurança obrigatório no porta-malas de todos os carros — lembram do kit de primeiros socorros no Brasil? — para mostrar o que são: motoristas, frequentemente de cidadezinhas ou áreas rurais do interior, furiosos com os aumentos nos combustíveis.
O último aumento é uma “taxa de carbono” para ajudar salvar o planeta e a posição de líder global que Macron ambiciona ter.
Para quem tem orçamento apertado e precisa de carros ou caminhões no trabalho, foi a gota d’água.
Os “coletes amarelos” têm a característica dos movimentos espontâneos, com cartazes feitos a mão e protestos marcados pelas redes sociais — embora, obviamente, tenha parecido muita gente, à direita e à esquerda, querendo tirar uma casquinha.
São menos organizados que os caminhoneiros brasileiros e bem menos pacíficos que os milhões de brasileiros que protestaram ordeiramente contra a corrupção em 2015.
Um “núcleo duro” ergueu barricadas em plena Avenida Champs Elysées no sábado.
Não houve depredação de bancos e lojas, como fazem os black blocs, mas os white blocs — uma brincadeira com as diferenças entre os dois movimentos — mostraram que a coisa é séria.

‘Como cachorros’

Barricadas incendiadas na avenida mais bonita do mundo sempre criam imagens chocantes, embora Paris tenha tradição no ramo.
Só para lembrar alguns episódios mais conhecidos: a Fronda de 1648 (a Jornada das Barricadas gravou o nome na história), a revolução de  julho de 1830 (a do quadro icônico de Delacroix, a Liberdade Guiando o Povo), e a de 1832 (de Os Miseráveis), a Revolução de 1848 (“Com esta gloriosa revolução, o proletariado francês se colocou à frente do movimento europeu”, comemorou Engels no Manifesto Comunista que escreveu com outro alemão obscuro, Marx). Para encerrar o século 19, a Comuna de Paris, de 1871.
Diante de tamanhos precedentes, as barricadas de 1968 empalidecem, mas é um típico caso em que a versão acaba valendo mais que os fatos.
Não existe nenhum clima pré-revolucionário na atual França próspera e de alto padrão de vida. O que torna mais instigante o estado de espírito que levou o índice de popularidade de Macron a humilhantes 26% — 3% a menos que seu patético antecessor, François Hollande, no mesmo período.
Os aumentos nos combustíveis, que totalizam 21% no governo Macron, são pesados e certamente prejudicam os menos abonados (como a França é a França, existe uma compensação para habitantes das áreas rurais).
O que impressiona são os comentários dos “coletes amarelos” sobre  Macron. “Não liga para nós” e “Nos trata como cachorros” foram algumas frases recolhidas pelo jornal Le Figaro no sábado.
Numa demonstração de seu estilo arrogante, muitas vezes desligado, o presidente reagiu: anunciou para terça-feira a criação de um Alto Conselho para o Clima.
O pau comendo solto nas ruas e Macron vai discutir “um pacto social da conversão ecológica”. Provavelmente, os “coletes amarelos” não vão ficar muito felizes.
O aspecto apolítico do movimento provoca comparações com as revoluções camponesas da Idade Média que explodiam quando a turma do pé no barro na massa não aguentava mais e saia com forcados na mão.
A mais conhecida é a Jacquerie, de 1358. O nome saiu da maneira superior com que a nobreza tratava a peãozada — “Jacques” valia para qualquer um. O equivalente no Brasil poderia ser “a revolução dos Zés”.
Os Zés franceses saíram barbarizando, liderados por Guillaume Cale, com uma longa lista de reclamações.
A Guerra dos Cem Anos — uma sequência de batalhas, basicamente entre Inglaterra e França — havia  criado ambientes de derrocada da lei e da ordem e liberado para mercenários que infernizavam a vida do povão, sem a proteção que era a obrigação da nobreza.

Nobre assado

A gota d’água foi a criação de mais uma taxa para bancar o resgate do rei João II. Isolado na Batalha de Poitiers, apesar da guarda real de 19 nobres todos vestidos de forma igual para confundir o inimigo, ele se rendeu, entregando uma luva como símbolo da desistência.
Acabou na Inglaterra, muito bem tratado, como exigiam as regras de fidalguia. Mas para ter o rei de volta os franceses tinham que entregar metade do país e pagar um resgate de quatro milhões de coroas.
O resgate acabou pago, com um certo desconto, e os campônios rebelados foram passados na ponta da espada, não sem antes praticar atos do tipo Game of Thrones.
“Mataram um nobre, puseram no espeto e assaram na frente de sua dama e dos filhos. Depois que uns dez violentaram a dama, tentaram obrigá-la, e aos filhos, a comer a carne do fidalgo, antes de matarem cruelmente a todos”, relatou o historiador e poeta medieval Jean Froissart, em estilo mais conciso do que o de George R.R. Martin.
Para manter o estilo Game of Thrones, o líder da Jacquerie, Guillaume Cale, foi torturado antes da decapitação e, possivelmente, “coroado” com uma coroa de ferro derretido.
Os “coletes amarelos” não têm forcados, fora os simbólicos, e nem o tipo de organização dos movimentos políticos tradicionais. Sua arma mais poderosa é a aprovação de 73% dos franceses, muitíssimo além das greves que atazanam regularmente a população.
O movimento pode refluir, mas fica a lição: um presidente eleito com ampla maioria e simpatia pode despencar espetacularmente em pouco tempo.
Se não reverter o fluxo, vai acabar isolado, falando sozinho em seu  discursos floreados e dando lições de moral, aos franceses e ao resto do mundo, incluindo Donald Trump, a quem afrontou diretamente nas comemorações dos cem anos do fim da I Guerra Mundial, com críticas bizarras ao nacionalismo.
“O problema é que Emmanuel sofre com uma taxa de aprovação muito baixa na França, 26%”, trolou Trump pelo Twitter.
O “homem mais odiado do mundo”, como Trump é constantemente apresentado, está com aprovação média de 43,8%.
Para terminar, o fim da história do rei João: um de seus filhos foi mandado para a Inglaterra como garantia de que o acordo de resgate seria cumprido, mas conseguiu fugir.
O bom João achou a atitude indigna pelo código de honra da nobreza e, voluntariamente, voltou para o cativeiro de luxo. Morreu na Inglaterra, em 1364. Deixou as encrencas francesas para o filho, Charles II. que estranhamente fez um bom reinado. Mas a Guerra dos Cem Anos, que durou 116, continuou até 1453.
A vida já foi mais difícil, Macron.

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