Quando o juiz Sergio Moro foi fotografado com o livro Novas Medidas contra a Corrupção e, depois, o mencionou como uma de suas referências para as reformas que pretende apresentar como ministro da Justiça, muitos ainda desconheciam esse trabalho. Trata-se, no entanto, do maior conjunto de medidas anticorrupção já produzido no mundo e que conta com uma característica peculiar: foi desenvolvido pela sociedade brasileira.
O nome Novas Medidas já revela que o pacote dialoga com uma proposta anterior: as “Dez Medidas contra a Corrupção”. Muito mais familiar ao público, graças à bem-sucedida campanha de coleta de assinaturas realizada entre 2015 e 2016, essa iniciativa conseguiu o apoio de cerca de 2 milhões de brasileiros. Muitos se lembrarão, no entanto, de seu final frustrante, com o pacote enterrado pelos deputados na madrugada seguinte ao acidente aéreo da Chapecoense. Enquanto o país estava de luto, praticamente todas as medidas foram derrubadas. Para completar, incluíram-se tópicos de cunho claramente retaliatório aos membros do Ministério Público responsáveis pelas propostas.
As Dez Medidas tiveram o mérito de envolver a sociedade em um debate sobre a corrupção com enfoque em soluções para o problema, buscando atacar as raízes desse mal sistêmico. Mas é certo também que o pacote trazia complicações. Embora pensadas para crimes de colarinho-branco, algumas dessas medidas atingiriam réus de outros crimes e ameaçavam direitos e garantias processuais importantes. Além disso, o pacote apresentava uma limitação de origem, pois partia da perspectiva de uma só instituição: o Ministério Público. O MP tem legitimidade para propor reformas anticorrupção, pois realiza trabalho significativo nessa área e, na maioria das vezes, se frustra com um sistema que garante impunidade a ricos e poderosos. No entanto, há que lembrar que nosso sistema judicial é disfuncional nas duas pontas. De um lado, é extremamente leniente e incapaz de punir réus abastados. De outro, é punitivista e viola, de forma sistemática, garantias básicas de sua clientela preferencial, que é a população de baixa renda. Assim, qualquer medida que busque atacar o problema no andar de cima deve cuidar para não agravá-lo no andar de baixo.
A Transparência Internacional é a principal entidade no mundo dedicada à luta contra a corrupção. Apesar de estar presente em 110 países, a TI permaneceu por quase uma década fora do Brasil. Recentemente voltou a operar no país e estabeleceu como prioridade ajudar a recuperar o debate sobre reformas anticorrupção abortado prematuramente pelo Parlamento brasileiro. Decidiu, então, convidar a sociedade a construir sua agenda de reformas, produzindo um novo pacote de medidas melhorado, ampliado e, principalmente, com abordagens mais plurais sobre o enfrentamento da corrupção. Embora a persecução penal, muito própria do MP, seja importante para atacar a impunidade, país nenhum conseguiu reduzir seus níveis de corrupção apenas por essa via. São necessárias outras abordagens, sobretudo a preventiva — o que inclui a educação para uma cidadania participativa e ética, a transparência e o acesso à informação pública, a desburocratização, a responsabilização do setor privado, a cooperação internacional e a recuperação de ativos, entre outras.
Para lidar com esse desafio, a TI aliou-se à Fundação Getulio Vargas para desenvolver uma metodologia de “legislação colaborativa”. O primeiro passo foi pesquisar o que tem funcionado mundo afora na luta contra a corrupção. Compilamos experiências inovadoras e outras que são avanços em legislações tradicionais de dezenas de países. A etapa seguinte consistiu de uma consulta a mais de 370 instituições brasileiras para que elas apresentassem propostas. Com base nas sugestões recebidas e na compilação internacional, 192 especialistas — de diversas áreas, formações e visões — redigiram e revisaram os textos das medidas. Nesse processo, chamado blind peer review, os revisores desconheciam quem eram os autores, justamente para evitar um embate de “nomes” e favorecer o debate de ideias. Ao final, o conteúdo foi inserido em uma plataforma de consulta pública (Wikilegis), para que a população tivesse a oportunidade de comentar artigo por artigo e propor redações alternativas.
O resultado foram setenta medidas legislativas, entre projetos de lei, propostas de emenda constitucional e minutas de resoluções administrativas. Muitos questionam a razoabilidade de algo tão extenso. Mas há bons motivos para isso. O primeiro é o processo amplamente participativo que originou o documento, integrando diversos setores da sociedade para que incorporassem suas visões e experiências. O segundo é a perspectiva de que esta seja uma agenda de reformas que possa servir como referência a longo prazo, para aplicação, inclusive, em estados e municípios. O terceiro é que, se existe um momento para ter ambição na luta contra a corrupção, esse momento é agora, e a janela de oportunidade pode já estar se fechando.
Para pautar o debate público e conquistar o compromisso dos candidatos com o pacote, foi lançada em junho deste ano a campanha Unidos contra a Corrupção, por um grupo de entidades brasileiras apartidárias. Durante pouco mais de quatro meses, meio milhão de brasileiros assinaram um formulário on-line para pressionar os candidatos a comprometer-se com a agenda. O resultado foi positivo: 34 deputados federais e onze senadores alinhados com as medidas foram eleitos. Agora que o pacote vem ganhando mais visibilidade e peso político, novos parlamentares têm declarado seu apoio. É uma verdadeira frente parlamentar suprapartidária anticorrupção que está se formando para finalmente dar uma resposta efetiva a esse grave problema social.
A luta contra a corrupção não é um fim em si mesma. É uma luta por direitos. As Novas Medidas formam um conjunto que, sobretudo, respeita e promove direitos. É assim que a sociedade deseja vencer o desafio da corrupção. Os novos eleitos, não somente do Legislativo, mas também do Poder Executivo, têm agora de responder à altura.
* Bruno Brandão é economista e diretor da Transparência Internacional — Brasil