Nova York, três graus positivos. A baixa umidade, moderada, faz pensar na secura radical que, do outro lado do país, abre caminho para as chamas que consomem vidas na verde Califórnia. Aqui, a subida dominical da ponte do Brooklyn é praticamente uma escalada contra o vento cortante que sopra da baía, varrendo os raios de sol. Na mão inversa, os ciclistas, em desespero, nada podem fazer diante da invasão da sua pista exclusiva por turistas em marcha impetuosa, como eu. O trajeto, um dos passeios mais óbvios da cidade, funciona como alívio superficial para a maratona cinefílica à qual me dediquei na véspera, numa sala independente onde está rolando o DOC-NYC, maior festival de documentários dos EUA. Coincidência ou não, todos os filmes que vejo dizem respeito à impostura, à falência das relações, ao pesadelo da criação. Em suma, ao que é, e sempre foi - notícias à parte — fake.
A começar por “The other side of the wind” (“O outro lado do vento”), falso documentário inacabado de Orson Welles. Finalizado agora, meio século depois, em produção da Netflix, estreou em NY na telona, em paralelo ao streaming. É um delicioso painel de vaidades setentistas que adivinham o colapso das artes na distante virada do século, ao contar a história de um cineasta (vivido por John Huston) que tenta dar sentido à sua obra em progresso. O clássico loop metalinguístico de “filme inacabado dentro de filme inacabado” se dá num contexto sociocultural tão selvagem e voraz que as imagens e as falas tangem diretamente aos nervos, sem necessidade de uma edição racional.
Em diapasão parecido, “The ghost of Peter sellers”, ainda sem título brasuca, é o relato do diretor húngaro Peter Medak sobre o naufrágio de seu sonho de, ainda jovem, dirigir o gênio britânico numa comédia de piratas filmada no Chipre, em 1973. Saindo da relação com Liza Minelli, Sellers, entre o deprimido e o eufórico, sabota o projeto: um roteiro cheio de falhas, numa produção megalômana. As imagens do filme jamais lançado (a Columbia rejeitou o resultado) e dos catastróficos bastidores, com a atuação estapafúrdia de Sellers, perfazem uma tragicomédia por si só. E os embates confessionais do diretor com seu passado são pungentes.
Na sessão seguinte, a estreia novaiorquina de “Silicone soul”, da diretora Melody Gilbert, a partir das pesquisas da psicanalista Danielle Knafo, trouxe para a tela da sala lotada o universo das pessoas que abrem mão de amar seres de carne e osso para devotarem suas vidas a corpos (e supostas almas) de silicone. A solidão, o medo da perda do ente amado, o sentimento de inadequação ao mundo são “resolvidos” por meio de interações com objetos passivos, passíveis de construção simbólica de identidades, com resultados surpreendentes. São relações estáveis que fazem pensar no outro lado do balcão: é possível, de fato, saber algo sobre o outro? Estamos essencialmente “vivos” ou inanimados quando o vazio preenche o espaço de uma relação?
Para fechar a maratona, uma sessão de meia-noite de “Suspiria”, a joia de Dario Argento (1977, recentemente refilmado), que leva à quintessência a arte do terror: os desenlaces e os sustos da trama são secundários, e até ridículos, frente à beleza da condução psicológica das cenas pela fotografia e pela música, capazes de liquefazer os sentidos e fazê-los mergulhar na paisagem onírica interna de cada um.
O Globo