Sinal dos tempos: Ta-Nehisi Coates publicou "Entre o Mundo e Eu" (Objetiva).
Foi sucesso de vendas e de crítica nos Estados Unidos. E os especialistas, confrontados com a obra, sentenciaram: o livro merecia o National Book Award, um dos mais importantes prêmios literários dos gringos.
Acertaram: Coates venceu o National Book Award e eu, intrigado pelo delírio geral, espreitei o produto.
Justiça a quem a merece: "Entre o Mundo e Eu" é uma carta do autor ao filho de 15 anos escrita com sangue, suor e lágrimas. Diz-se que a emoção, em literatura, é má conselheira –e Anthony Daniels, nome real de Theodore Dalrymple, sublinha o fato na crítica, negativa, que fez ao livro na "The New Criterion".
Nesse quesito, discordo. Ta-Nehisi Coates escreve uma narrativa do "gueto" com impressionante força literária e alguns momentos de pura poesia.
Se existe um problema no livro (e existe), ele não está na forma; está no conteúdo. O National Book Award premiou uma obra que, na sua condenação do racismo (dos brancos), é um panfleto favorável ao racismo (dos negros).
Um panfleto enganador, note-se. Nas primeiras páginas, Coates refere-se aos brancos como "americanos que se julgam brancos" –e eu pensei, na minha ingenuidade, que para o autor a única raça que existe é a humana, sem discriminações epidérmicas.
Erro meu. O que Coates tem a dizer ao filho é que a história dos Estados Unidos –da escravidão às matanças policiais– é um processo contínuo de roubo e massacre dos negros.
É essa versão solar das coisas que permite a Coates deixar o principal conselho ao filho: não te mistures com "eles" porque existe um abismo entre "nós" e aqueles que vivem o "Sonho".
Uma passagem do livro é particularmente ilustrativa da mentalidade segregacionista de Coates. Nova York, 11 de setembro, 2001. Os Estados Unidos sofrem o maior ataque terrorista da sua história. Perante as imagens das Torres Gêmeas em derrocada, o coração de Coates fica "gélido", ou seja, "indiferente".
Por quê? Cito: "Nunca considerei nenhum cidadão americano como puro". Ah, os puros e os impuros. Onde foi que eu já ouvi isso?
Os meus pêsames. Não a Coates, que está para lá de qualquer salvação. Mas ao filho de 15 anos, que está no bom caminho para o ressentimento, o ódio, quem sabe a criminalidade.
Pudesse eu escrever uma carta a esse adolescente e teria outra história para lhe contar.
Começaria pela escravidão, essa mancha moral que o Ocidente promoveu –com a ajuda, convém recordar, dos traficantes negros que capturavam e vendiam os seus "irmãos de cor" no litoral africano. Mas acrescentaria que aquilo que define o Ocidente é também a capacidade para reconhecer as suas monstruosidades e de as abolir. Porque a escravidão continua –na África, na Ásia, até na América Latina.
Depois, condenaria os homicídios policiais de negros; mas teria o cuidado de esclarecer que isso não autoriza o ódio indiscriminado contra todos os brancos. Jogar todos os brancos na sacola demoníaca é uma forma de racismo perfeitamente comparável ao velho racismo dos senhores das plantações do Sul. O racismo não deixa de ser racismo só porque muda de cor.
E quando o assunto fosse o 11 de Setembro, diria simplesmente que a data é triste para os brancos; mas também para as famílias de mais de 200 "afro-americanos" que também morreram naquele dia. E que eram tão "puros", ou "impuros", como qualquer outro ser humano.
Finalmente, a minha carta imaginária terminaria com uma nota de esperança: a situação dos negros, no século 21, é incomparável com o mundo em que eles viviam 50 anos atrás. Lido no "The Wall Street Journal": 50 anos atrás, a população negra representava 50% da pobreza nos Estados Unidos. Agora, a cifra caiu pela metade –e são os hispânicos quem ocupam hoje o lugar dos negros de ontem.
Porque há possibilidades de enriquecimento e de ascensão social que, ao contrário do que diz o pai ao filho, não são uma traição ao grupo ou causa de vergonha tribal.
É um gesto de emancipação da consciência de vítima; e também de coragem, de verdadeira coragem, para sair do gueto onde o pai o pretende aprisionar.