
PETER BEHRENS, PARA O 'NEW YORK TIMES'
Escritor reconta história da família diante do horror da Segunda Guerra a partir de foto
Tem uma foto do meu pai com o meu avô, tirada em um domingo, dia 27 de agosto de 1939, de um ponto acima do Reno, no Rochedo Lorelei, onde o rio se estreita e o fluxo, acelerado, soa como um sussurro que tem um significado místico para os alemães.
Meu pai emigrara para o Canadá em 1934. Aquela era a primeira vez que voltava à Alemanha em cinco anos. Seu nome era Hermann, mas até seus amigos alemães o chamavam de Billy. Meu avô era Heinrich, mas a mulher, anglo-irlandesa, o chamava de Bobs.
A vida deles, reflexo da história, era insegura e vestir-se bem era importante. Tinham que estar sempre perfeitamente penteados e vestidos, como na tal da foto. Bobs encomendava ternos que, na verdade, não tinha condições de comprar de seu alfaiate inglês em Hamburgo. A camisa norte-americana de colarinho macio que vestia fora presente do filho, que fizera uma parada rápida na Brooks Brothers da Avenida Madison entre o desembarque do trem que vinha de Montreal e o embarque no New York, um navio hamburguês-americano.
Cinco dias após a foto ser tirada, o exército alemão invadiu a Polônia, dando início assim à Segunda Guerra Mundial. Quando olho para ela tenho a impressão de que meu avô está vendo o conflito descendo pelas águas caudalosas. Billy está com a mão no ombro do pai, como se quisesse consolá-lo – mas Bobs vê o que vê. Ou, quem sabe, esteja ouvindo Lorelei. Diz a lenda que o murmúrio do rio é um som hipnotizante feito por uma bela mulher para atrair os homens para a morte.
Eles eram católicos; não eram judeus, nem socialistas, nem especialmente vulneráveis. Bobs tinha levado uma bronca do chefe local do Partido Nazista por se recusar a retribuir o "cumprimento alemão" – o gesto de "Heil Hitler" – mas isso não foi nada comparado com os insultos e o horror por que outros passaram.
Meus avós tinham se conhecido e se casado em Londres. Viviam em uma mansão à beira-mar, na Ilha de Wight, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914. Bobs passou 4,5 anos terríveis, preso, como "estrangeiro inimigo"; depois, foi deportado, quando a saúde já estava debilitada e as economias, praticamente zeradas. Um grupo de quakers lhes deu dinheiro para as passagens e a comida da viagem até a Alemanha. Ao longo do percurso, seus baús de roupas e pertences foram saqueados pelas tropas da ocupação francesa.
Quando saltaram do trem, em Frankfurt, em janeiro de 1919, nem minha avó, nem meu pai falavam uma palavra de alemão. Ela nunca aprendeu, mas Billy, autodidata, leu e releu os romances de Karl May, histórias de aventureiros alemães e apaches nobres nos planaltos do Texas e do Novo México. May era o escritor favorito de Einstein. E de Hitler também.
Naquele verão de 1939, Billy esperava convencer os pais a sair da Alemanha – mas dar entrada em um visto de saída implicava em encargos extorsivos, incluindo uma "taxa de voo", sem garantia nenhuma de ter o pedido aprovado. E meu avô duvidava que a Inglaterra, a Irlanda ou o Canadá o recebessem, bem vestido ou não, melhor do que qualquer judeu alemão. Ele era um deportado. Se o deixassem entrar, certamente o prenderiam de novo se outra guerra estourasse.
Cinco dias após aquele momento no Reno, com o conflito deflagrado, Billy recebeu um telegrama do cônsul britânico em Colônia, alertando-o para "o estremecimento das relações entre o governo de Sua Majestade e a Alemanha" e sugerindo que ele deixasse o país imediatamente.
Billy tinha marcado a volta para a primeira semana de setembro, mas esperar tanto tempo podia ser arriscado. Ademais, não podia se dar ao luxo de ser pego a bordo de um navio de bandeira alemã se a Inglaterra declarasse guerra ao país (o que realmente aconteceu em três de setembro). Segundo as leis raciais de Nuremberg, ele era alemão. Os nazistas não reconheceriam seu passaporte britânico em tempos de conflito; teria que cumprir suas obrigações com a mãe-pátria como qualquer outro.
Decidiu então seguir para Roterdã, na Holanda, e pegar um navio holandês-americano. Após três semanas tensas, conseguiu comprar passagem em um navio para Nova York. Chegando a Montreal, inscreveu-se para servir na Marinha Real Canadense, mas não foi aceito por ser "alemão demais".
Meu pai ficou sem notícias dos meus avós durante vários anos; só veio saber que estavam vivos quando um amigo que servia o Exército canadense os encontrou vivendo nas ruínas de Frankfurt, em 1945.
Décadas depois, eu estava com meu pai em um hospital de Montreal. Ele estava morrendo; ninguém lhe tinha feito a barba ou penteado o cabelo nos últimos dias e usava apenas um daqueles aventais horríveis. Volta e meia tentava se levantar da cama – até que se acalmou e, muito lúcido, me pediu para tirar seu terno do armário. O último trem estava partindo de Roterdã e ele tinha que embarcar para cruzar a fronteira.
(Peter Behrens é autor, mais recentemente, de "Carry Me".)