Renato Alves/Folhapress | |
O ex-presidente Itamar Franco no dia do início do Plano Real, em julho de 1994 |
SERGIO FIRPO
JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO
Folha de São Paulo
JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO
Folha de São Paulo
O espetáculo do crescimento não veio. Ao governo restou a narrativa das conquistas sociais e da diminuição da desigualdade. Elas são inegáveis. Mas de quem foi o mérito? Que políticas foram mais eficazes para essa trajetória?
Entre 2003 e 2013, o índice de Gini, principal medida de desigualdade, caiu de 58 para 53 pontos (quanto mais próximo de zero, mais equânime é a distribuição de renda), queda de 8,6%.
Queda extraordinária? A narrativa governista diz que sim. Afinal, o desempenho foi melhor do que nos governos FHC. Entre 1993 e 2002, o índice foi de 60 para 58, recuo de apenas 3,3%. A narrativa do antes e depois é sedutora pela simplicidade. Mas há uma linha tênue entre simplicidade e simplismo.
Os emergentes foram expostos aos mesmos bons ou maus ventos externos. Os emergentes, incluindo o Brasil, sofreram crises de balanço de pagamentos nos anos 1990. Houve abertura comercial em muitos países durante os anos 1990. Nos anos 2000, os ventos sopraram a favor: commodities em alta, financiamento externo abundante. Sem exceção, o mundo emergente cresceu mais nos anos 2000, expansão que, em quase todos os casos, beneficiou os mais pobres.
Portanto, os bons ares comuns aos países sugerem olhar para fora, e a pergunta crucial é: como evoluiu nossa desigualdade de renda em relação a países comparáveis? A disponibilidade de dados permite analisar o período 1993 a 2013, o que inclui os governos FHC, Lula e boa parte de Dilma 1.
A queda da desigualdade brasileira, em relação aos países comparáveis –sejam todos os emergentes ou só a América Latina–, começa em meados dos anos 1990.
Com poucas exceções, entre elas Brasil e México, a desigualdade aumentou na América Latina nos anos 1990. E o fato raramente trazido ao debate público que os dados mostram claramente é que, em relação a países comparáveis, a desigualdade brasileira caiu mais fortemente nos anos 1990 do que nos anos 2000.
Comparada com a queda absoluta observada nos 2000, a desigualdade dos 1990 pode parecer irrelevante. Mas, quando contrastada com o que aconteceu com o resto do mundo e sobretudo com conjuntos de países similares ao Brasil, a queda da desigualdade de renda nos 1990 mereceria mais atenção principalmente para o diagnóstico de que políticas poderiam nos colocar novamente nessa rota.
Uma razão por trás disso foi a diminuição nos retornos salariais à educação nos anos 1990. Ao estudar mais, o trabalhador tem um aumento de remuneração. Esse é o chamado retorno salarial à educação. Em países nos quais a desigualdade educacional é grande, os retornos salariais da educação são elevados porque a demanda por profissionais qualificados supera muito a oferta.
Nos anos 1990, dois fatores principais impulsionaram a queda nos retornos educacionais. O primeiro esteve ligado à da educação. A correção de fluxo e a diminuição de evasão escolar, que se iniciaram no fim dos anos 1980, começaram a surtir efeito no mercado de trabalho na década seguinte, gerando um aumento de trabalhadores mais qualificados.
Conforme o acesso à educação melhora, a oferta de trabalhadores qualificados sobe. Esse processo reduz a desigualdade de renda porque um número maior de profissionais passa a receber salários mais altos e a disparidade entre as remunerações diminui.
O segundo canal foi via a demanda. Estudos estabelecem que a abertura comercial do fim dos 1980 e começo dos 1990 diminuiu relativamente o emprego nos setores intensivos em mão de obra altamente qualificada, ainda que tenha aumentado, em todos os setores, a participação de trabalhadores com ao menos o ensino médio completo.
Esse processo reduz a desigualdade de renda porque há um crescimento nos setores com trabalhadores com baixa escolaridade, gerando uma procura maior por trabalhadores com esse perfil, que passam a receber salários relativamente mais altos.
Mas, interessantemente, a abertura comercial gerou outras mudanças importantes nos anos 1990 que impactaram a desigualdade de renda para além da redução nos retornos à educação. Ao ser submetido a um aumento de concorrência de importados, o empregador precisa diminuir sua margem, o que o impede de pagar salários, ao menos no mesmo nível anterior, com base em características demográficas, como gênero, cor e região de origem.
Se compararmos pessoas com o mesmo nível de educação, a diferença de rendimentos entre gêneros, raça e regiões cai desde os anos 1990, explicando boa parte da queda da desigualdade no Brasil.
Mas essa é a narrativa dos 1990. E a dos os 2000? Essa é bem mais conhecida.
Nos anos 2000, a América Latina cresceu mais do que nos anos 1990. Viveram-se o boom de commodities e a expansão dos programas de transferência condicionadas de renda, como o Bolsa Família.
O crescimento possibilitou aumentos de salário mínimo que não causaram desemprego. Aprendeu-se com experiências bem-sucedidas e com fracassos. O resultado? Caiu muito a desigualdade no Brasil. Mas caiu no resto do continente também. Um pouco menos, mas caiu.
Ainda não há dados para estender a análise comparativa para os anos de 2014 e 2015. Mas tudo indica que pioramos muito em relação aos nossos pares.
Afinal, em 2015 a desigualdade no Brasil piorou depois de muitos anos.
Como seguir evoluindo? A combinação de franquia democrática, reabertura comercial e crescimento econômico nos retornará à trajetória de diminuição da desigualdade. O crescimento econômico permite, por exemplo, aumentar salário mínimo sem causar desemprego, como nos 2000. Para crescer, é crucial aumentar a produtividade, o que se consegue abrindo a economia. Mas a profunda recessão em que o país está mergulhado tem nos desviado dessa rota.