Ministros do Supremo ignoram o código moral que orienta as relações entre juízes e amigos fora da lei
E ntre os achados da Compliance Zero, operação da Polícia Federal que vinha devassando as bandalheiras colecionadas pelo Banco Master, apareceu um dos mais superlativos contratos da história da Justiça. Hospedado no celular do banqueiro Daniel Vorcaro, o documento estabeleceu que, a partir de 2024, o escritório da advogada Viviane Barci de Moraes, mulher do ministro Alexandre de Moraes, receberia ao longo de três anos “um total de cento e vinte e nove milhões de reais”. Mensagens internas do contratante alertavam que os repasses mensais ao contratado deveriam ser tratados “como prioridade absoluta”.
Não há menções a áreas de atuação ou processos específicos. O contrato apenas informa que o escritório receberia a dinheirama para representar o cliente “onde fosse necessário”.
Em 2024, por exemplo, foi necessário que Viviane e os filhos Alexandre e Giuliana, também diplomados em Direito, cuidassem de uma queixa-crime contra o investidor Vladimir Timerman. Presume-se que Viviane tenha trabalhado também em casa, sobretudo nos fins de semana. Sobrava tempo para conversar com o marido sobre o cliente com quem sonham todos os advogados.
Não se sabe com exatidão quantas parcelas mensais de R$ 3,6 milhões foram pagas até que o Banco Central decretasse a liquidação extrajudicial do Master. Enquanto durou, a farra dos honorários fez de Viviane uma campeã nacional. Se fosse jogadora de futebol, só perderia para Neymar no quesito arrecadação mensal. No mercado dos bacharéis em Direito, liderou o ranking o tempo todo. Especialistas no assunto informam que o valor máximo cobrado por profissionais da série A é de R$ 5 mil por hora de trabalho.
No caso da dona do Barci de Moraes, o preço ficou acima de R$ 20 mil por hora. Para justificar a dinheirama que chovia a cada 30 dias, ela teria de dedicar diariamente ao Master 8 horas. É um recorde e tanto. Se o contrato foi cumprido, durante quase dois anos os honorários de Viviane estiveram acima dos salários pagos aos principais executivos do Brasil. Em 2024, por exemplo, o diretor-presidente do Santander, Mario Leão, ganhou cerca de R$ 2,5 milhões. O presidente do Conselho da Natura, Fabio Barbosa, quase chegou a R$ 3 milhões. Ambos passam os dias às voltas com decisões que envolvem milhares de funcionários e transações que movimentam milhões de dólares. No Barci de Moraes trabalham apenas Viviane e dois filhos. Só no STF, os três administram 32 processos em tramitação.
Um ano e meio depois da assinatura do acordo, a família comprou por R$ 12 milhões, pagos à vista, a mansão de 725 metros quadrados localizada no Lago Sul, um dos pontos mais valorizados de Brasília. Além do apartamento na região dos Jardins que ocupam em São Paulo, os Moraes são proprietários de um duplex em Campos do Jordão com mais de 352 metros quadrados, sauna seca e molhada, jardim Zen e espaço fitness. Moraes ganha o salário teto do funcionalismo público federal: R$ 46 mil. Dinheiro, portanto, é o que não falta.
Mas o ministro faz questão de espetar nas costas dos pagadores de impostos alguns prazeres que poderia perfeitamente bancar com o próprio dinheiro. Num recente fim de semana, ele requisitou um jatinho do FABTur para voar até Florianópolis, fazer uma palestra e regressar a Brasília. No mesmo espaço de tempo, o ministro Edson Fachin, novo presidente do Supremo, pagou com parte do que ganha uma viagem aérea com milhagem semelhante à de Moraes.
Foi a bordo de um de seus jatos que a polícia encontrou, em novembro, Daniel Vorcaro, minutos antes da decolagem para longe do Brasil.
Preso por encarregados de investigar a pequena multidão de delinquentes envolvidos na fraude calculada em R$ 12 bilhões, Vorcaro foi solto 11 dias depois pela mesma juíza que autorizara sua captura. A doutora não conseguiu enxergar evidências de que o meliante pretendia fugir. Filipe Martins, ex-assessor internacional do presidente Jair Bolsonaro, está preso há dois anos, acusado de ter feito uma viagem que não fez.
É um dos perseguidos preferenciais de Alexandre de Moraes, que não deu um pio sobre o caso Master. Falou e agiu por ele o parceiro Dias Toffoli, seguindo um roteiro provavelmente desenhado em 29 de novembro, durante o voo do jatinho — mais um — que levou um grupo de ilustres torcedores do Flamengo e do Palmeiras para ver em Lima a final da Libertadores da América. Além de Toffoli, entre os passageiros estava o advogado Augusto Arruda Botelho.
A cordialidade exibida pela dupla seria um exemplo de civilidade e boas maneiras se estivessem lado a lado apenas um palmeirense e um flamenguista. O problema é que Botelho é, acima de tudo, uma das estrelas do vasto elenco de doutores contratados para livrar Vorcaro da gaiola (e saquear os escombros do Master).
Eles sabem que o mais curto caminho para a impunidade é o pavimentado por escritórios providos de advogados que entram sem bater nas salas do STF. Em 3 de dezembro, refeito da ressaca provocada pela derrota do Palmeiras, Toffoli transferiu da primeira instância para o seu gabinete tudo o que se refere às bilionárias bandalheiras de Vorcaro.
Pretexto: a drenagem do pântano do Master revelou a possível participação de um deputado federal — e parlamentares desse naipe têm direito a foro especial. Dois dias depois, resolveu que o caso merece “sigilo máximo”.
A expressão camufla um truque ainda mais radical que o “segredo de Justiça”. Só Toffoli tem livre acesso a qualquer coisa ligada ao caso. Só ele sabe o que se descobriu ou o que falta apurar. Só ele pode contar o que quiser a quem lhe interessar. Toffoli faz o que lhe der na telha — por exemplo, devolver bilhões de reais a empresários de estimação que assinaram acordos de leniência com a Lava Jato para escapar da merecidíssima cadeia.
O campeão da mediocridade é capaz de tudo (menos ser aprovado num concurso de ingresso na magistratura).
Organizações narcoterroristas já se infiltraram em gabinetes e escritórios de Brasília, vários deles ocupados por integrantes do elenco que atuou ou atua no caso Master.
“O sistema de Justiça brasileiro está virando um grande Gilmarpalooza”, criticou a ONG Transparência Internacional, evocando um dos destaques do calendário de eventos em que políticos, juristas e empresários celebram o sumiço das barreiras éticas. Na plateia, patrocinadores envolvidos em processos que tramitam em altíssimas instâncias fingem prestar atenção nas discurseiras dos doutores que poderão definir o desfecho da causa — e aumentar ou reduzir seu patrimônio.
O que efetivamente interessa aos participantes do encontro, estejam no palco ou na plateia, é o que será dito em voz baixa no escurinho da mesa do restaurante ou no bar deserto do hotel. Em novembro, entrevistado por uma emissora de TV, o ministro Gilmar Mendes garantiu que não o incomoda a nova denominação do que o criador continua a chamar de Fórum de Lisboa, mesmo depois de transferido para Buenos Aires.
“Para nós é ótimo que falem mal, ou chamem de Gilmarpalooza”, disse à entrevistadora.
“Atrai ainda mais atenção, é um case de sucesso.”
O decano do STF também garante que os próprios organizadores bancam as despesas. Se é assim, por que sempre aparece no material sobre o evento um punhado de empresas que se apresentam como patrocinadoras? O Master, por exemplo, não perdeu nenhuma chance de contribuir em dinheiro para qualquer sarau a que estivesse presente o dono de uma toga.
“É uma opção”, Gilmar respondeu sem responder. Em 2022 e 2024, o Master optou por patrocinar diretamente ao menos cinco desses eventos, todos abrilhantados pela presença dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. “A relação entre magistrados e interesses privados precisa de mais controle”, advertiu a ONG Transparência Internacional.
Neste 9 de dezembro, terça-feira, o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) juntou-se ao coro dos inconformados com a remoção de regras que orientavam as relações entre os incumbidos de aplicar a lei e os especialistas em violentá-la
Depois de uma reunião com Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça e da Segurança Pública, o parlamentar sergipano, relator da CPI do Crime Organizado, afirmou que organizações narcoterroristas já se infiltraram em gabinetes e escritórios de Brasília, vários deles ocupados por integrantes do elenco que atuou ou atua no caso Master. Vieira censurou sem temores o comportamento esquizofrênico do Supremo, tão duro com quem critica as sandices que protagoniza e tão brando com casos de polícia disfarçados de pais da pátria.
O silêncio de Lewandowski é um triunfo da prudência. Em 2003, ao deixar o STF, ele assinou um contrato para, em troca de R$ 100 mil mensais, manter os homens da lei longe do reino de Vorcaro. E foi “consultor” do banco até ser convidado para o ministério.
Melhor ouvir o alerta do senador por Sergipe. Ou faz isso ou se junta
de vez ao consórcio que, depois de rasgar a Constituição, tenta agora
liquidar a legislação comum, as normas éticas, os códigos morais e a
vergonha na cara.
Augusto Nunes e Carlo Cauti - Revista Oeste