Decisão de Dias Toffoli de blindar o Master fecha uma caixa-preta que poderia ser uma Lava Jato 2.0
N
a quarta-feira, 3, o ministro Dias Toffoli, do Supremo
Tribunal Federal (STF), puxou da 1ª instância para o STF o
caso de corrupção bilionária que envolve o Banco Master.
Sorteado relator de um processo movido pela defesa de
Daniel Vorcaro, dono da instituição financeira, o juiz do STF entendeu
que o caso era de competência da Corte pelo suposto envolvimento de
pessoas com foro privilegiado. Em razão disso, estabeleceu sigilo
sobre todos os documentos e avisou que qualquer movimento no
processo só será permitido com a anuência do STF. A canetada dele
anulou ainda todos os atos dos tribunais inferiores nesse processo.
A blindagem ocorreu em meio à apreensão do celular de Vorcaro, que deixou Brasília em polvorosa, durante a operação da Polícia Federal (PF) que manteve o empresário e executivos do Master na cadeia por apenas 11 dias. O curto período, no entanto, foi suficiente para uma série de fatos emergirem na imprensa que, até então, só tinha conhecimento da tentativa malsucedida de venda da instituição financeira. O Banco Central (BC) liquidou o Master depois de ter identificado inúmeras irregularidades em várias transações financeiras, e acionou as autoridades.
Ligações com o Judiciário
O problemão levou Vorcaro a contratar quatro escritórios de primeira linha conhecidos pelo bom trânsito na capital federal: Bottini & Tamasauskas, Marcelo Leonardo Advogados Associados, Podval Advogados Associados e Warde Advogados. É neste último que surge um elemento de interesse: em 2021, a advogada Roberta Rangel, mulher do próprio Toffoli, integrou o quadro societário. Hoje, ela não faz mais parte do negócio. A lista de personagens não para por aí. Outro elo sensível surgiu quando veio à tona que o Master também contratou, há poucos anos, o escritório Barci de Moraes, no qual trabalham a mulher de Alexandre de Moraes, Viviane Barci, e dois filhos do magistrado, disse O Globo, que não teve acesso às datas ou quantias recebidas
A teia de vínculos no Judiciário se amplia ainda mais quando se observa que, ao deixar o Supremo, em 2023, Ricardo Lewandowski fechou um contrato de R$ 100 mil mensais para trabalhar pelo Master. O acordo durou até o momento em que ele foi convidado para assumir a Segurança Pública do governo Lula, quando a parceria foi encerrada. A atuação definida como “consultoria” ocorreu antes de sua ida para o Poder Executivo, mas o episódio reforçou a presença de figuras de alto relevo institucional no entorno de Vorcaro, ampliando a dimensão política da crise.
A interrupção de algumas parcerias do Master, no entanto, não rompeu as ligações da instituição com autoridades do Judiciário. Paralelamente à contratação de bancas e ex-ministros, o banco passou a aparecer como patrocinador de uma série de eventos nacionais e internacionais que reuniram integrantes do STF no exercício do cargo, procuradores, governadores e parlamentares. Em alguns desses encontros, realizados em Nova York, Paris, Londres, Roma e no Rio de Janeiro, o próprio Vorcaro esteve presente e dividiu a mesa em jantares com ministros.
Ao menos cinco desses eventos, ocorridos entre 2022 e 2024, tiveram patrocínio direto do Master e contaram com a participação de membros do Tribunal: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Toffoli, Luís Roberto Barroso e Lewandowski. A proximidade entre o banco e figuras centrais do Judiciário ampliou o alcance institucional das relações que agora orbitam o processo sob sigilo no STF.
Elos políticos
Fora do Judiciário, há também gente de Legislativo e Executivo envolvida, embora não se saiba exatamente quem. A PF citou, por exemplo, um parlamentar federal, cujo nome não foi comunicado. Isso porque a PF encontrou um contrato celebrado entre o Master e esse congressista. Há também executivos do Banco de Brasília (BRB), controlado pelo governo do Distrito Federal (DF), que teriam supostamente ajudado o Master em irregularidades. As investigações da PF mostram que o BRB negociava, desde o início do ano, a compra de parte das operações do Master — justamente o período em que Vorcaro articulava sua defesa com bancas de alto calibre.
A ação da PF desencadeou um efeito dominó no BRB. A 10ª Vara Federal do DF determinou o afastamento do então presidente da instituição, Paulo Henrique Costa, e de outros dirigentes ligados a transações com o Master. Depois disso, o governador Ibaneis Rocha exonerou a diretoria e nomeou Nelson Souza, ex-presidente da Caixa Econômica, para comandar o BRB.
As relações políticas do Master também alcançaram a cúpula da República. O ex-presidente Michel Temer foi contratado pelo banco e participou de conversas em Brasília sobre a negociação justamente envolvendo o BRB. Temer afirmou ter sido chamado para atuar como “mediador” em reuniões que incluíram ele próprio, Vorcaro e Rocha, quando a transação entre o Master e o banco estatal ainda estava em discussão.
De acordo com a PF, o BRB não só negociava a compra de parte das operações do Master como também mantinha transações consideradas de alto risco, incluindo aquisições de carteiras de crédito e restituições bilionárias intermediadas por empresas sob suspeita. Um dos pontos mencionados nas apurações é que o banco teria aceitado a devolução de quase R$ 7 bilhões por meio de uma companhia classificada pelos policiais como “de fachada”. O avanço das investigações mostrou, porém, que as irregularidades atribuídas ao Master não se restringiam ao Distrito Federal.
O ministro Dias Toffoli, responsável por assumir o caso do Master e impor sigilo ao processo, tomou decisões de grande impacto em outros episódios recentes
No Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro exonerou o gerente de investimentos do Rioprevidência, após vir à tona que o fundo de pensão dos servidores estaduais aplicou cerca de R$ 970 milhões em letras financeiras do banco — o maior aporte entre as 18 entidades que investiram em papéis do Master. Documentos analisados pelo Tribunal de Contas do Estado apontaram que as aplicações foram feitas sem autorização adequada do conselho de administração e com justificativas técnicas inconsistentes, além de falhas de transparência. Parte das operações aparece registrada inicialmente em nome de uma corretora intermediária, sem menção direta ao Master, o que levantou dúvidas adicionais sobre a regularidade das transações.
A conselheira relatora do caso, Marianne M. Willeman, destacou a “inequívoca gravidade das irregularidades” e recomendou que Castro adotasse medidas urgentes para evitar prejuízos aos 430 mil servidores civis e militares vinculados ao fundo. O Ministério Público do Rio fez recomendação semelhante no mês seguinte, solicitando que o governo do Estado adotasse medidas de proteção ao patrimônio previdenciário.
Dois pesos e duas medidas
A rapidez com que Vorcaro deixou a prisão reforça a sensação de que há, no sistema de Justiça, tratamentos distintos conforme o peso político ou econômico do investigado. Esse contraste fica evidente quando se observam outros casos conduzidos pela mesma Corte. Um deles é o de Filipe Martins, ex-assessor da Presidência para Assuntos Internacionais do governo Bolsonaro, que permaneceu seis meses preso — apesar de ter apresentado elementos que indicariam inocência — e segue em regime domiciliar sem perspectiva de progressão. Situação semelhante se repete com diversos investigados do 8 de janeiro, muitos dos quais enfrentam longa espera por decisões judiciais, submetidos a restrições severas, mesmo envolvidos em processos muito menos complexos que o escândalo financeiro protagonizado pelo Master.
A percepção de desequilíbrio se acentua quando se lembra que o ministro Dias Toffoli, responsável por assumir o caso do Master e impor sigilo ao processo, tomou decisões de grande impacto em outros episódios recentes. No âmbito da Lava Jato, anulou provas, derrubou sentenças e determinou que a União devolvesse valores bilionários pagos por empresas em acordos de leniência anulados — entre eles mais de R$ 1 bilhão da antiga Odebrecht. Enquanto multas expressivas da maior operação anticorrupção da história do país são desfeitas e empresários envolvidos em operações vultosas recuperam a liberdade em poucos dias, réus de menor poder econômico permanecem sob restrições prolongadas.
O conjunto desses episódios evidencia um sistema que não aplica seus rigorosos instrumentos de forma uniforme. A sucessão de decisões contraditórias corrói a confiança pública no sistema de Justiça e alimenta a velha máxima do imaginário político brasileiro: “aos amigos, os favores; aos inimigos, a lei”— ou a interpretação dela conforme a conveniência.
Revista Oeste